Tudo começou com um sonho. Estou sentada em um longo banco de madeira com minha família. Não reconheço as pessoas, mas sei que são minha família. E são todos negros. No dia seguinte, conto para uma amiga e destaco: “Só eu não era negra naquele banco.”
– Acho que teu inconsciente quer te lembrar dos teus ancestrais, diz ela me olhando bem séria.
– Peraí, eu nunca esqueci que sou uma mistura de várias etnias.
– Todos somos, Rose. Não existe “raça pura”. Existem pessoas brancas e pessoas não brancas.
– Bom, acho que branca, branca mesmo, eu não sou.
– Então tu és negra.
– Eu?
– Sim. Se não és branca, nem amarela, nem indígena, és negra.
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Instala-se em mim uma espécie de letargia, um mal-estar. Pelo jeito, não sou quem eu pensava ser. E ter me autodeclarado parda nos últimos censos não altera meu estado de ignorância. Passei batido pelo Estatuto da Igualdade Racial e pelos critérios do IBGE – “População negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas.”
Fico dividida: ou sou parda, logo negra; ou não sou parda, logo branca. Na frente do espelho, procuro minha ascendência europeia. E o que vejo é uma mulher madura de pele bege escuro. Ou marrom claro. Será que existe meio pardo?
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Abandono a autoavaliação e decido perguntar aos amigos: qual minha raça, na tua opinião? Contabilizo dois votos para negra, dois para “somos todos negros”, um para caucasiana, um para italiana, um para espanhola com ascendência moura, cinco para cor de brasileiro. Fico mais confusa. Apelo à percepção jovem da minha sobrinha:
– Tia, acho que é interessante pensar um aspecto importante: na tua história foste tratada como negra? Sofreste preconceito como uma? Tiveste menos oportunidades?
– Claro que não. Tive todos os privilégios possíveis para alguém da classe média. Nunca percebi preconceito em relação à minha cor.
Passam-se alguns minutos e já perdi a certeza. E se aconteceu o tal preconceito e eu não vi? Ou aconteceu, eu vi e preferi fingir que não vi?
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Meu Deus, isso é complexo demais. Por que só agora que sou uma senhorinha de cabelos grisalhos minha aparência “pé na África” (não é assim que dizem?) se tornou importante?
Não sei. Deixo essa resposta para vocês. Por enquanto, assimilo a visita dos meus antepassados e, de quebra, mudo roteiros. Depois de ler que a Polônia está entre os países mais racistas da Europa, decidi que não vou mais a Cracóvia em setembro, como estava planejado. Azar dos poloneses que não vão me conhecer.
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