O nascimento de um bebê é o evento mais importante na vida de um ser humano. A criança representa a esperança na continuidade da existência e simboliza a frutificação do amor de um homem e de uma mulher, unidos também pelo desejo de constituir família. Além do romantismo que descreve este ato, a fisiologia do nascimento impõe à mãe a coragem e a força física, para fazer cumprir o curso da vida e trazer ao mundo o bebê formado em seu ventre.
om o passar dos tempos, as técnicas foram se modernizando e os procedimentos de parto tornando-se complexos, conduzidos por profissionais da Medicina, de diferentes áreas. No entanto, a região ainda guarda resquícios de uma história sublime, escrita pelas mãos de mulheres de coragem, as parteiras. A Gazeta do Sul ouviu histórias de amor, angústia e realização, para não deixar morrer uma das atividades mais antigas e essenciais à continuidade da vida, a profissão de parteira.
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Os 50 anos de partos de Livette
Era pela estradinha empoeirada que passa em frente à casa da família que a parteira aposentada Livette Alzira Lovato Piazza saía toda vez que chegava a hora de trazer uma criança ao mundo. Na localidade de Cortado, em Novo Cabrais (e que já foi interior de Cachoeira do Sul), ela é autoridade até hoje. Ora no lombo de um cavalo, ora de carroça, ou até mesmo a pé, a franzina silhueta da parteira percorria os rincões para ajudar mulheres a darem à luz seus filhos.
A estrada ainda é a mesma, a localidade também, e a sabedoria igualmente é preservada. Aos 93 anos e meio, como ela gosta de salientar, dona Livette revela que foi parteira por 50 anos. De 1968 a 2018, já com 91 anos de idade, ela foi a luz do mundo para crianças nascidas no interior, tendo finalizado sua jornada de parteira há dois anos.
O exemplo da pequenina senhora inspira mulheres em todo o país. “Em novembro passado, eu participei de um congresso, realizado na Bahia. Lá, vimos a realidade de muitas mulheres guerreiras, que até hoje são parteiras em comunidades quilombolas e aldeias indígenas. Nestes povoados, elas são as lideranças”, relata dona Livette.
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Mas para entender a importância da participação dela no evento, é preciso voltar pelo menos cinco décadas no tempo. Dona Livette é conselheira da Escola de Saberes, Cultura e Tradição Ancestral (Escta), da Bahia, e começou como parteira ajudando sua mãe, dona Maria Madalena Lovato. “Foi depois do nascimento do meu terceiro filho que eu me dediquei a esta missão”, conta. A parteira diz que a mulher que tem o dom de ajudar outra a trazer um filho à luz não pode negar essa bênção, e precisa cumprir o trabalho como uma missão.
Para fazer isto da melhor forma, ela buscou aperfeiçoamento. Participou de cursos da Emater/RS-Ascar, que também olhava para a saúde de mães e bebês no interior, e trabalhou na maternidade do Hospital de Caridade e Beneficência de Cachoeira do Sul. A preparação foi intensa, assim como os desafios, trazidos logo em sequência.
No mesmo ano dos cursos e do início da atividade, em 1968, Livette se deparou com uma missão muito grande. Ela fez um parto de trigêmeos, na casa de uma família de Cortado. “Eu fui, examinei a mãe e disse: eu acho que tem dois aqui. Quando começaram a nascer, tinha três filhos”, recorda. Um dos meninos até foi batizado por ela, o Clécio. “Ele acabou morrendo em um acidente de trânsito. Ele era um dos filhos daquela família que eu ajudei”, salienta.
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No começo da atividade, dona Livette registrava os partos. Porém, ao longo do tempo, parou de contabilizar o número de nascimentos. “Nascia muita criança naquele tempo, meu filho. Chegou a ter oito partos em uma única semana. Até que o governo começou a incentivar os métodos contraceptivos, nascia muita criança. Depois baixou um pouco.”
Em cinco décadas de atividade, a parteira lamenta duas mortes. Apenas dois bebês perdidos, por falta de recursos tecnológicos. “Nunca nenhuma mãe morreu, e as duas crianças não resistiram porque faltou o oxigênio. No interior, onde a pobreza e a falta de acesso eram igualmente grandes, não tinha muito o que se fazer”, observa dona Livette.
A parteira encarou a pobreza e a miséria, que às vezes era na alma das pessoas. Quem pensa que morar na colônia é sinônimo de fartura está enganado. A aposentada revela que nunca colocou preço no parto, dizia às famílias mais humildes que dessem aquilo que podiam. No entanto, quando percebia que o dinheiro era curto e a intenção da família era gastar com outras coisas, cobrava. “Eu pegava aquele dinheirinho e mandava comprar uma coberta para a criança. Às vezes, não tinha nem isso.”
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Boa hora de nascer
Dona Livette conta que não existe uma fórmula para saber quando uma criança vem ao mundo com exatidão. Sempre, dias antes do parto, uma conversa com a mãe precisa ser feita, para que seja realizado o cálculo dos dias, e também passadas as instruções finais à genitora. Geralmente, este encontro determinava mais ou menos a data de parir.
No dia em que começavam as dores, a parteira era chamada. “Se era o primeiro filho, às vezes eu ia até a casa da família e voltava. Mas quando a mulher já tinha dado à luz outras crianças, a recomendação era ficar e esperar, que não iria demorar tanto.” A parteira explica que o apoio emocional é um dos pontos mais fortes do trabalho, assim como a força física para ajudar a mãe a parir.
A medida é a dilatação no corpo da mãe. A parteira avalia: se deu quatro a cinco dedos, possibilitando que a cabeça do bebê encaixe, está na hora. “Ali começam as contrações também, o próprio corpo ajuda a tirar o bebê. Dependendo da mulher, de duas a três contrações são suficientes.”
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Quando a criança nasce, é preciso pinçar o cordão umbilical em dois pontos e cortar no meio, a aproximadamente dez centímetros da barriga do bebê. Aí, a parteira entrega a criança para quem está ajudando no parto e continua com a mãe, para retirada da placenta. “Algumas vezes eu precisei encaminhar a mulher para o médico, pois nem sempre é fácil retirar a placenta”, confidencia Livette.
A aposentada ainda guarda uma maleta, recebida da Unicef, no início da carreira. Na valise, ela tem luvas de látex, um avental verde-água, tesouras, pinças e até ampolas de um medicamento, utilizado para conter hemorragia nas mamães, quando necessário.
Sobre continuar fazendo partos, dona Livette é direta. Desde 2018 não fez mais nenhum, e, embora esteja em bom estado de saúde, demonstra não ter a intenção de repetir. “Se for uma emergência, eu até faço, mas prefiro que a mãe vá para o hospital. Já recebi mamães a caminho do parto, em vezes que o motorista da ambulância queria ter segurança que o bebê iria nascer na maternidade. Eles passavam por aqui, para eu avaliar”, disse.
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Na prática
Até meados dos anos de 1990, a figura da parteira era comum nas maternidades dos hospitais na região. As irmãs vera-cruzenses Teresa Kist, de 70 anos, e Agnes Nyland, de 77 anos, aprenderam a profissão na prática, e atuaram nos hospitais antes desta época.
Agnes começou mais cedo, no Hospital Santa Cruz, ainda na década de 1960. Já a irmã mais nova trabalhava no Santa Cruz e no Ana Nery. “Eu precisava fazer um tratamento caro na época. Por isso, tinha que ter dois empregos”, diz Teresa.
Na página 10 da antiga carteira de trabalho dela é possível ler que o primeiro contrato de trabalho, em janeiro de 1975, lhe rendia por mês o valor de 387 Cruzeiros. “A gente começava fazendo de tudo. Depois, aprendia a ser atendente de enfermagem. As irmãs ensinavam”, conta Teresa. Assim, ela começou como parteira.
Agnes diz que a parte mais difícil em um parto, em seu entender, é controlar a ansiedade da mãe, que, em meio à dor, perde um pouco os sentidos. “A mãe precisa de atenção, de cuidado. Isso a gente ajudava muito”, refere.
Entre os momentos marcantes da carreira dela está o parto de gêmeos, em 1970. Ela ganhou até foto dos pais das crianças, tirada na maternidade do Hospital Santa Cruz. “Eu me sinto feliz por ter me tornado parteira. Nunca imaginei ter esta profissão, foi totalmente ao acaso”, conta Agnes, que trabalhou no Hospital Santa Cruz de 1966 a 1993.
Teresa recorda da agonia que sentia toda vez que uma criança nascia e não chorava. Lembra também que antigamente nasciam mais bebês do que nos dias de hoje. “Eu lembro que em um único turno nasceram até 12 bebês. Eram muitas crianças, todas meio parecidas”, brinca a parteira aposentada.
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Aposentada e realizada
Marlene Rusch tem 67 anos e tornou-se parteira aos 17. Na época, a casa da família dela ficava perto do Hospital Ana Nery, e desde pequena ela vivia próximo da casa de saúde. “Eu tinha um sonho de criança, trabalhar no hospital e cuidar de bebês”, confessa.
Seguindo o rito de formação de parteira, Marlene começou a trabalhar fazendo de tudo um pouco, e, nas horas vagas, aprendendo como ajudar uma mulher a parir. “Eu trabalhei por 18 anos no turno da noite. Naquela época, muitas crianças nasciam à noite, e o bebê não espera até o dia amanhecer”, salienta.
Marlene investiu na formação. Foi parteira treinada à moda antiga, forjada pela experiência da prática, mas decidiu ir além. Fez curso de auxiliar de enfermagem e, em 2005, formou-se Técnica em Enfermagem, no município de Novo Hamburgo. Finalizou sua carreira como técnica, e saiu porque quis do hospital, pois poderia ter seguido.
Hoje, à sombra das árvores e em meio aos canarinhos, em sua casa no Bairro Faxinal Menino Deus, em Santa Cruz do Sul, Marlene sente-se feliz com a trajetória iniciada quando era ainda muito jovem. “Me sinto realizada. Sou uma parteira realizada, consegui ser na vida aquilo que sempre quis, desde os meus 6 anos de idade, quando dizia que queria cuidar de bebês no hospital”, complementa a parteira aposentada.
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Parteiras e doulas
Parteiras como dona Livette ou como Agnes, Teresa e Marlene estão em extinção. Nos grandes centros urbanos, e até mesmo nas localidades do interior, o acesso aos procedimentos modernos, com multiprofissionais da área da saúde, tornou-se uma realidade. A exceção são as regiões mais afastadas do país, como frisa a parteira do interior de Novo Cabrais.
No entanto, o movimento em favor do parto humanizado, que acolhe a mãe e o bebê de uma maneira mais amorosa, conta com uma profissão que, quando comparada com o ofício das parteiras, é relativamente nova. As doulas surgiram na década de 1970, nos Estados Unidos, a partir de um estudo científico naquele país.
Micheli Fabiane Nunes Pommerehn é doula e diz que a função de parteira hoje é ocupada pelas enfermeiras obstetras. “A doula faz um trabalho que vai além da fisiologia; trabalha o emocional, como o medo e a ansiedade”, cita. A figura da doula substitui a presença da mãe, das irmãs, no tempo das famílias numerosas. No passado, as mulheres apoiavam-se umas nas outras para dar à luz. Com a redução dos núcleos familiares, muitas vezes a grávida está sozinha, e, além do marido, não conta com ajuda de outras mulheres. Neste contexto surge a profissão de doula, que no Brasil começou a aparecer na década de 2000. O nome doula vem do grego e significa “mulher que serve”.
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