No monastério Alexander Nevski, visitei os túmulos de Fiódor Dostoiévski, Piotr Tchaikovski e Mikhail Lomonosov. Dostoiévski escreveu um dos livros que considero ter mudado minha vida: Crime e castigo. As cenas de São Petersburgo, ao longo do Rio Neva ou pela bela Avenida Nevsky, não me saíam da cabeça enquanto o relia posteriormente.
Muito além da trama que se tornou um clássico, Crime e castigo retrata, com a devida complexidade, nossa relação ambígua de intimidade e distância com a consciência, e faz refletir sobre o quanto temos guardado em nossa mente de forma inconsciente e, portanto, fora de nosso controle. São as coisas que processamos sem notar, e que aparecem eventualmente para influenciar decisões e pensamentos. Parece ser o que chamamos de intuição, indicando o que devemos fazer ou não, sem que entendamos bem o porquê. Esse arquivo assombroso, que não conhecemos, nos influencia igualmente na relação com as pessoas. Dostoiévski, no mesmo livro, fala de pessoas pelas quais nos interessamos imediatamente em um primeiro encontro, antes mesmo de trocar qualquer palavra.
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Boa parte dos autores, compositores e cientistas russos tem um traço em comum associado a uma vida sofrida e dramática, que acaba se manifestando de algum modo em suas obras. Dostoiévski, por exemplo, chegou a ser condenado à morte pelo império russo, por subversão, e, instantes antes da execução, teve sua pena convertida em trabalhos forçados na Sibéria. Tchaikovsky, após um casamento que durou poucas semanas, tentou o suicídio, aos 37 anos. Suicídio também pode ter sido a causa de sua morte, oficialmente causada pelo cólera, aos 53, nove dias após a estreia de sua Sexta Sinfonia (Pathétique), em São Petersburgo.
Na imensa praça do Palácio de Inverno, tive uma sensação de vastidão que poucas construções me causaram. O prédio principal, hoje Museu Hermitage, possui um assombroso acervo de pinturas e obras de arte, que, por si só, fazem valer a visita à cidade. São precisos vários dias para conhecer, ainda que superficialmente, os 65 mil metros quadrados do museu, que não deve nada a outros mais aclamados, como o parisiense Louvre ou o florentino Uffizzi.
Há também muitas igrejas na cidade, belíssimas e com estilos variados. Algumas almejam a grandeza de templos famosos de outras cidades. A colunada da igreja de Kazan imita a arquitetura do Vaticano. A Igreja do Salvador sobre o Sangue Derramado usa a extravagância de cores e formas da moscovita Catedral de São Basílio. A suntuosa Catedral de Santo Isaac é o maior templo ortodoxo da cidade, e a Catedral de São Pedro e São Paulo guarda os túmulos de quase todos os imperadores e imperatrizes russos, de Pedro o Grande até o último czar, Nicolau II, incluindo a czarina Catarina II, que foi a soberana da Rússia por 34 anos.
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Como em Moscou, também vi muita arte pelas ruas e praças de São Petersburgo. Nos Jardins de Verão, me emocionei com um jovem e seu xilofone. Uma música quase mágica, e mais um dos tantos talentos anônimos de um país onde, ao menos teoricamente, o indivíduo deveria se satisfazer não com fama e dinheiro, mas com sua contribuição ao bem coletivo. A Rússia é um país com muita corrupção e uma infinidade de problemas estruturais e econômicos. Nunca foi uma democracia, embora hoje alegue ser. Mesmo assim senti, no espírito dos russos, o amor à liberdade, cuja noção vai bem além do sentido superficial com que nós, ocidentais, costumamos interpretar.
A escritora brasileira Cecília Meireles trouxe uma das definições mais exatas para isso, quando diz que “Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Deve, contudo, ser um meio e nunca um fim. Frequentemente, é um estado de espírito que depende muito mais do âmbito pessoal do que de fatores externos. O pensamento flexível e o coração aberto que encontrei nos russos parecem refletir essa liberdade individual, ainda que o coletivo do país permaneça parcialmente oprimido.
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