Regional

Conheça os primeiros passos do cooperativismo de crédito na América Latina

Muitos acontecimentos marcaram o fim do século 19 e o início do século 20. No Brasil, a assinatura da Lei Áurea, em 1888; a Proclamação da República, em 1889; a Revolta da Chibata, em 1910. No mundo, os Primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna aconteciam em Atenas, em 1896, e em 1914 começava a Primeira Guerra Mundial. 

Enquanto esses fatos eram registrados, no interior do Rio Grande do Sul um homem trabalhava para também deixar marcado na história outro importante acontecimento. Era o jesuíta Theodor Amstad que, com um pensamento muito à frente do tempo em que viveu, transformou a vida de produtores rurais com a criação do cooperativismo de crédito. 

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Reconhecido em 2019 como o Patrono do Cooperativismo, Amstad tem sua história contada em uma rota turística na Serra Gaúcha, mais especificamente na localidade de Linha Imperial, município de Nova Petrópolis. 

E foi para dar mais luz a essa história e ampliar o conhecimento sobre os primeiros passos do cooperativismo na América Latina que a Sicredi Vale do Rio Pardo convidou profissionais de imprensa da região para conhecerem onde Amstad começou a fazer história. A Gazeta do Sul acompanhou, na última quarta-feira, 22, a visita à Rota do Cooperativismo, em Nova Petrópolis, e agora conta boa parte da história do religioso inovador.

Como tudo começou

Túmulo de Amstad está localizado na frente da Igreja São Lourenço Mártir

Em 2022 completam-se 120 anos da criação da primeira cooperativa de crédito da América Latina, a Caixa de Economias e Empréstimos Amstad, atual Sicredi Pioneira RS, mais antiga instituição financeira privada em funcionamento no País. Contudo, antes de 1902, Theodor Amstad já trabalhava em favor do cooperativismo.

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Foi em 1885 que, com 34 anos, o padre suíço desembarcou no Brasil. Designado para exercer o sacerdócio no Rio Grande do Sul, Amstad sabia que levar a religião católica aos mais diversos cantos do Estado era sua principal função, mas ele queria e sabia que podia fazer mais. 

Mas é preciso voltar ainda mais no tempo. Durante a visita, o gestor executivo da Casa Cooperativa de Nova Petrópolis, Paulo César Soares, falou sobre o início da colonização germânica no Brasil, em 1824. “Nossa colônia é alemã, mas a gente gosta de falar ‘colonização germânica’ e não alemã porque a imigração germânica se inicia em 1824 e o estado alemão se forma em 1871. E isso é muito relevante porque desses fundadores da Casa Cooperativa, 12 deles são da Boêmia, que é uma região da República Tcheca. Quer dizer, nossa comunidade é tcheca, por isso gostamos de falar em imigração germânica.” 

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Placa mostra a fundação da cooperativa de Santa Cruz do Sul, no ano de 1919

Na explanação, Soares destacou as dificuldades vivenciadas por esses imigrantes. “Eram pessoas miseráveis que quiseram arriscar e vir para cá. No começo de tudo, quando chegaram aqui e ganharam pedaços de terra, não tinha infraestrutura, era mato. Com poucas ferramentas, eles precisavam começar do zero.”

Com questionamentos desses imigrantes, a notícia de tais condições chegou à Europa. “Vendo a necessidade que essas pessoas tinham no Brasil, a Igreja envia para o País um contingente de 671 jesuítas.” Entre esses homens estava Theodor Amstad.

Quando chegou, em 1885, Amstad passou a perceber as dificuldades dos colonos. “Homem que mudaria o cenário social e cultural do País. Na nossa comunidade ele é tratado como um herói”, definiu Soares. Como nada se faz do dia para a noite, o religioso inicia um movimento em benefício do cooperativismo. Enviado para a região de São Sebastião do Caí, Amstad já conhecia o sistema de cooperativa de crédito. “Ele se apropria desse conhecimento e vem para o Brasil com essa informação.”

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O guia relatou, também durante a palestra, que a função primordial do padre era rezar missas nas colônias. Surge então o movimento denominado de “As 20 estações”. Assim, montado em uma mula chamada de Diana, o jesuíta começa a ir até as comunidades, isto é, cada uma era uma estação. “Ele saía de uma estação a outra, dormia nas capelas mesmo, e das 6 às 8 horas abria para a confissão e das 8 às 9 horas rezava a missa. A função sacerdotal dele se encerrava ali. Pelo resto do dia, ele anotava as demandas dos colonos. Depois da missa era o momento de conversar com as pessoas e tentar, de alguma maneira, ajudá-las.” 

Theodor Amstad fez isso por 17 anos, todos os dias. “Com isso, se tornou conhecido por todos e as pessoas viam nele alguém extremamente capaz”, salientou Soares.

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Dos mapas à criação da pioneira

Gestor executivo da Casa Cooperativa de Nova Petrópolis, Paulo César Soares

O primeiro censo demográfico e os primeiros mapas da região de Nova Petrópolis foram feitos pelo padre. “Ele conhecia todas as pessoas pelo nome, isso é impressionante. É uma região de mais de 80 quilômetros. Eu coloquei o mapa que ele desenhou sobreposto com o Google. O design, as curvas do nosso município, é tudo igual, e ele fez isso em meados de 1886, sem GPS”, frisa Soares. Assim, surgiu a alcunha de “padre dos mapas”. 

Por conta dessas andanças e por conhecer muita gente, dois anos antes da criação da primeira cooperativa, em 1900, é estruturada a primeira associação gaúcha de agricultores, no município de Feliz. “A partir dali é colocada a semente do cooperativismo. O padre Amstad falava para as pessoas que trabalhando juntos ficava mais fácil.”

Depois de certa resistência influenciada por superstições, em 1902 é criada, junto a outros 19 fundadores, a primeira cooperativa de crédito da América Latina, a Caixa de Economias e Empréstimos Amstad – atual Sicredi Pioneira RS, de Nova Petrópolis. “A primeira instituição financeira privada do nosso País era uma cooperativa e é daqui, de Linha Imperial”, disse Soares.

Após a primeira, o padre inicia um movimento, fundando 37 cooperativas. Em 1923, Amstad sofreu um acidente de mula, que o deixou sobre uma cadeira de rodas. No entanto, seu trabalho continuou a distância. Calcula-se que, enquanto teve condições, Theodor Amstad viajou por 185 mil quilômetros – o equivalente a três voltas ao mundo – montado na mula Diana e semeando a ideia do cooperativismo. O religioso morreu em 7 de novembro de 1938, aos 86 anos, no município de São Leopoldo.

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Um homem disruptivo

Paulo César Soares fez questão de ressaltar a figura disruptiva que o padre Theodor Amstad foi. Educação financeira, meio ambiente e a inserção das mulheres em lugares frequentados somente por homens foram alguns dos temas abordados pelo religioso em tempos nos quais era inimaginável tocar em tais assuntos. 

Por seu trabalho missionário pautado em encontrar soluções às dores da comunidade, Amstad revolucionou também ao mobilizar outras ações, como a criação da Sociedade União Popular Volksverein, em 1912; a construção de um leprosário e um orfanato para as crianças separadas dos pais leprosos; e a criação de asilo, escolas e de colônias pelo interior até então inexplorado do Rio Grande do Sul.

Ele também foi o responsável por incentivar a formação de parteiras para que auxiliassem as mães nessas novas comunidades. Além de tudo isso, foi um dos criadores de uma agência para intermediar empregos a alemães, em Porto Alegre, durante a Primeira Guerra Mundial.

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A casa cooperativa

Casa Cooperativa está passando por restauração

A Casa Cooperativa de Nova Petrópolis é uma entidade que guarda e zela a história do cooperativismo. “O que temos aqui precisa ser amplamente divulgado, por isso fiquei tão feliz com esse movimento do Vale do Rio Pardo para conhecer essa história que é muito legal”, sublinhou Soares.

Atualmente, Nova Petrópolis é considerada a Capital Nacional do Cooperativismo e Linha Imperial é o local com o maior número de marcos no mundo ao cooperativismo. A rota conta com a Casa Cooperativa e o túmulo que guarda os restos mortais do padre, diante da Igreja São Lourenço Mártir. No interior do templo, há uma escultura do padre junto às placas das cooperativas fundadas por ele no Rio Grande do Sul – entre elas Santa Cruz do Sul, Agudo e Sobradinho. Os visitantes também podem ver a casa de Amstad, erguida ao lado da igreja, e sua estátua, situada na praça que também leva o nome dele. 

O passeio pela Rota do Cooperativismo deve ser reaberto à comunidade no próximo ano, devido à restauração pela qual a Casa Cooperativa está passando. “As pessoas podem sim vir a Nova Petrópolis, conhecer os marcos, mas não haverá a visitação guiada. A partir do próximo ano, o memorial Padre Amstad vai estar aberto. Se houver interesse, a partir de 2023 é só entrar no site www.casacooperativa.com.br e se inscrever”, explicou o gestor executivo da Casa Cooperativa.

Reconhecido patrono em 2019

Padre Theodor Amstad

Em 9 de dezembro de 2019, foi sancionada a lei que concedeu a Amstad o título de Patrono do Cooperativismo Brasileiro. Desde 2003, ele já possuía o título de Patrono do Cooperativismo no Rio Grande do Sul. “A história da nossa fundação é, também, a história da origem do cooperativismo no Brasil e na América Latina. Por isso, o reconhecimento nacional ao trabalho de Amstad é um orgulho para a cooperativa e uma conquista que deve ser comemorada”, disse em 2019 Tiago Schmidt, presidente da Sicredi Pioneira RS.

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Preparar o futuro

Petry, presidente da Sicredi Vale do Rio Pardo

O padre Amstad, como precursor do cooperativismo, é lembrado como uma pessoa inspiradora pelo presidente da Cooperativa Sicredi Vale do Rio Pardo, Heitor Petry. “Ele dizia que, quando você encontrar uma grande pedra no caminho e não conseguir removê-la sozinho, você vai juntar tantas pessoas quanto necessárias e, juntas, sob o comando de uma liderança, conseguirão remover essa pedra. Com isso ele conseguiu contagiar muitas comunidades.”

Para Petry, essa é uma história que precisa ser respeitada e remete para a responsabilidade de que haja preocupação com a evolução. “Se hoje temos uma cooperativa de 103 anos é porque muitos associados e lideranças do passado, cada um a seu modo, a seu tempo, enfrentando as situações próprias do momento, deram sua participação para que chegasse até hoje.” O presidente lembra que muitas cooperativas não resistiram e sucumbiram no século passado. “Portanto, hoje temos esse compromisso de dar valor a esta história, empreender nossa energia para poder manter a cooperativa ativa em seu propósito de contribuir com o desenvolvimento da região e, ao mesmo tempo, prepará-la para o futuro”, completa. 

Tal preparação para os anos que estão por vir, segundo Petry, está nos investimentos na juventude. “Um dos princípios do cooperativismo é a educação. Quando você trabalha com estudantes, eles começam a vivenciar experiências nesse sentido, a entender a importância da cooperação, da solidariedade, o estímulo para o empreendedorismo e a liderança.”

De acordo com o presidente da Sicredi VRP, a região já possui grande inserção do cooperativismo, mas muitas vezes isso não é percebido pela população. “É preciso mostrar para a comunidade o tamanho desse cooperativismo e o quanto ele impacta positivamente, pois toda cooperativa atua na ótica de ajudar a desenvolver a região. Cada ramo tem sua especificidade de atuação, mas contribui para o desenvolvimento regional, fortalecendo a economia e estimulando o empreendedorismo e a produção. É um aspecto importante ampliarmos a difusão do cooperativismo a partir dos bons exemplos e boas experiências que já temos aqui em vários ramos”, complementa Petry.

Os visitantes também têm a oportunidade de conhecer a casa do famoso jesuíta, erguida ao lado da Igreja São Lourenço Mártir, na localidade de Linha Imperial

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Marcio Souza

Jornalista, formado pela Unisinos, com MBA em Marketing, Estratégia e Inovação, pela Uninter. Completo, em 31 de dezembro de 2023, 27 anos de comunicação em rádio, jornal, revista, internet, TV e assessoria de comunicação.

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Marcio Souza

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