João Maria de Agostini, um monge italiano que viveu na região entre 1845 e 1848, está no centro de uma polêmica que, de forma inusitada, envolve Rio Pardo. Naquela época, em uma visita à Cidade Histórica, o religioso teria ficado decepcionado com o descaso da população local em relação à espiritualidade. Ao se referir à comunidade de forma um tanto rude, teria havido um atrito com moradores, e até o tenente-coronel Andrade Neves teria sido envolvido. Como decorrência, o monge teria lançado uma maldição sobre a cidade, o que foi aventado em diversas ocasiões e até foi tema de matérias da Gazeta do Sul. Mas se a tal praga alguma vez existiu ou foi rogada, há quem diga que ela, finalmente, está superada. É o que verificamos nesta reportagem especial.
No mês passado, na peregrinação ao Morro Botucaraí, durante a Sexta-feira Santa, a Gazeta do Sul relembrou a origem de uma tradição que reside na figura do monge italiano João Maria de Agostini. O religioso viveu na região entre 1845 e 1848, em Candelária e em Santa Maria, no Campestre. Realizando pregações e curas, a ele é atribuída a crença popular de que a fonte de água do Botucaraí teria poderes curativos. No entanto, um episódio que marcou o período do profeta andarilho por aqui foi a praga que teria rogado ao município de Rio Pardo.
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Em 1845, ao visitar a Cidade Histórica, o monge João Maria teria ficado chocado com o abandono das doutrinas religiosas pela população, e decidiu pregar ao povo rio-pardense. Nessa ocasião, registrada tanto pelo senador Cruz Jobim, em 1874, quanto pelo padre Zeferino Dias Lopes, em 1891, o monge analisou os usos e costumes das famílias de Rio Pardo com severidade, e empregando palavras grosseiras. Presente na missa com a família, o então tenente-coronel José Joaquim de Andrade Neves teria se sentido desacatado. Nesse ponto, as histórias divergem: uma diz que Andrade Neves teria desferido chibatadas no religioso e ordenado que soldados o prendessem; a outra, que o militar teria agredido Agostini com bengaladas.
Ainda que não existam registros históricos de que o monge teria rogado uma praga, sob a qual o município de Rio Pardo não veria progresso enquanto um descendente de Andrade Neves ali vivesse, a história perdurou no imaginário popular e se tornou uma tradição oral. Os acontecimentos foram relembrados pela Gazeta do Sul em uma série de reportagens da jornalista Mara Pante, publicadas em 2003. As cinco matérias resgatam a passagem de João Maria e os atos de fé atribuídos a ele nos municípios da região, inclusive a suposta maldição.
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Um dos especialistas sobre a trajetória do monge peregrino é o historiador Alexandre de Oliveira Karsburg, de Santa Maria. Doutor em História Social pelo Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ele é autor do livro O eremita das Américas: a odisseia de um peregrino italiano no século XIX (Editora da UFSM, 2014) e atuou como consultor histórico do documentário sobre o monge, A Maravilha do Século (2019). A pesquisa de Karsburg reúne informações sobre todos os documentos que citam Agostini e a localização desses arquivos.
O pesquisador declarou que uma das provas da passagem do religioso pela região foi o cajado dado de presente a uma família local. “Algo que não está documentado, mas certamente aconteceu, foi a entrega de um cajado ao sr. João Gomes de Moraes, proprietário de terras da região e possivelmente a pessoa mais próxima do monge na época. Até hoje guardado como relíquia pela família Moraes, o cajado é a presença concreta do monge, um atestado da passagem dele pela região”, explica. “Essa prática de presentear alguém por amizade ou por alguma dádiva recebida era algo recorrente no monge, que fez isso em inúmeros outros locais das Américas por onde passou.” O cajado é mantido por Leonel Santos Moraes, descendente de João, que participa anualmente da peregrinação ao Morro Botucaraí na Sexta-feira Santa.
O suposto agressor do monge, José Joaquim de Andrade Neves, também conhecido como Barão do Triunfo, foi um importante militar e é considerado o patrono da Cavalaria Brasileira. Nascido em Rio Pardo, em 1807, ingressou no exército aos 19 anos de idade. Lutou na Revolução Farroupilha pelo lado imperial, participando de muitos combates, e se destacou na invasão brasileira ao Uruguai, em 1864, quando já era general. No ano seguinte, à frente da 3ª Brigada de Cavalaria, fez parte da Guerra do Paraguai, onde liderou uma série de ataques vitoriosos. Ferido no pé com um disparo, ele veio a falecer em Assunção, em 6 de janeiro de 1869. Antes de morrer, Andrade Neves teria delirado de febre e sofrido alucinações, o que testemunhas atribuíram à praga lançada pelo monge. Um dos últimos descendentes vivos do militar, o advogado José Francisco de Andrade Neves Meirelles, faleceu em 2021, aos 91 anos. O tetraneto do Barão do Triunfo vivia em Porto Alegre quando concedeu entrevista à Gazeta do Sul em 2003, relembrando as histórias de família a respeito da praga de João Maria de Agostini.
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O ex-prefeito de Rio Pardo Edivilson Brum relembra que cresceu ouvindo a lenda de que Rio Pardo não prosperava por causa da maldição lançada por um monge. A versão que ouviu dos familiares, especialmente da mãe, nascida em 1944, diz que o general Andrade Neves teria surrado Agostini porque ele estava ficando muito poderoso, o que poderia ameaçar a influência do militar. “Reza a lenda que quando o monge foi embora de Rio Pardo, colocaram-no de costas em um jumento e ele teria batido as sandálias, porque não queria levar nada da cidade com ele, e que essa terra não iria prosperar enquanto houvesse um descendente de Andrade Neves vivo.”
A história mexe tanto com o imaginário rio-pardense que, quando já era prefeito, Edivilson recebeu informações de uma médium de que seria necessário realizar uma ação para perdoar o monge e remover a maldição. “Reunimos um grupo de pessoas e fomos até o Morro Botucaraí. E, após subir o morro, fizemos uma série de orações lá em cima para que Agostini tivesse sua alma livre e perdoada”, comenta.
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O ano era 2001. A reversão da maldição do monge contou ainda com uma bênção feita pelo então bispo dom Sinésio Bohn, durante a Sexta-feira Santa. “Os templos evangélicos também fizeram cultos pela alma do monge na época”, recorda Brum. Segundo ele, logo após começaram a ser notados os resultados positivos para o desenvolvimento da cidade, como a construção do Hotel Recanto do Imperador, da Estação Rodoviária, bem como a instalação de diversos empreendimentos. Tudo isso levou a crer que João Maria de Agostini realmente estaria perdoado e Rio Pardo, livre da praga.
João Maria de Agostini era um italiano que decidiu seguir a vida religiosa e cruzou o oceano em 1838, vindo às Américas para evangelizar. Passou por Venezuela, Equador, Colômbia e Peru até chegar ao Brasil, em 1844, sempre iniciando tradições religiosas onde se estabelecia. Ele pregava o evangelho, receitava ervas e chás para uso medicinal, curava os doentes e era considerado pelo povo um santo, capaz de fazer milagres. No entanto, sua influência por onde passava motivou perseguições e prisões.
O caminho do monge levou-o ainda a Uruguai, Argentina, Chile e Paraguai, além da América Central e do Norte. Passou por Cuba, em 1861, e se estabeleceu no meio-oeste americano, na montanha Tecolote, que mais tarde ganhou o nome de Hermit’s Peak (Pico do Eremita). Viveu nesse local, no estado do Novo México, de 1863 a 1867 e se dirigiu para o sul, em Mesilla, onde foi assassinado por índios apaches com flechadas, em 1869. O italiano também inspirou outros religiosos eremitas no Brasil, como João Maria de Jesus e José Maria de Santo Agostinho.
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O sociólogo César Hamilton Brito Góes, professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), começou a estudar as religiões populares na década de 1980, quando realizou uma pesquisa sobre o conflito dos Monges Barbudos em Sobradinho, atualmente território de Lagoão. O trabalho levou-o à tese de doutorado sobre a extensão e a importância da crença no monge João Maria. O período da pesquisa coincidiu com a época em que se falou da possibilidade de remover a praga do italiano através de orientações que ele mesmo teria passado em cartas psicografadas por uma vidente.
Segundo o pesquisador, havia um clima de euforia na cidade com a ideia de que a maldição chegaria ao final. “Antes desses eventos, cabe destacar que, também por solicitação da população da cidade, sobretudo do povo mais simples, nosso bispo católico, dom Sinésio Bohn, realizou um ritual de bênção na Matriz, para que a praga fosse anulada na cidade”, lembra.
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Góes comenta que a Capela de Santo Ângelo, local da agressão, mais tarde deu lugar à Igreja de Nosso Senhor dos Passos. “Não há muita dúvida sobre o papel do Barão do Triunfo, a quem a praga se dirigia de forma especial e que, de maneira errônea e cego pela cólera, acabou envolvendo toda a população. Variam nas narrativas recolhidas a forma e a intensidade com que João Maria foi humilhado e castigado após a sua pregação, mas não resta dúvida de que algum evento dessa natureza ocorreu, e passou a dominar o imaginário religioso e popular da cidade”, frisa. “E o que acho mais importante: creio que existe um sentimento de que esse ciclo se fechou, e a memória do Santo Monge está agora reconciliada com a cidade e sua população.”
Conforme o professor, a extensão da crença nos feitos do monge é um dos motivos pelos quais ele continua estudando esse personagem. “Seja na Romaria do Cerro do Botucaraí, ou Santo Cerro, para muitos, seja na Romaria da Santa Cruz, no Peru, ou em sua morada no Novo México, a memória do Santo Monge aparece sempre da mesma forma: cultuado entre os pequenos e desfavorecidos, alimenta mensagens de cuidado com a natureza, a saúde e de uma vida comunitária, condenando e recusando as promessas de uma vida moderna que, segundo ele, não traria vantagens aos pobres.”
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