É no ano em que aprende a formar sílabas, compreender palavras e dar sentido às frases que Antônio Bartolo Neto, de apenas sete anos, experimenta a vida “nômade” em contraponto à “permanência” na escola. Representante da oitava geração de uma família de artistas de circo, ele já sabe que a cada novo mês conhecerá uma nova cidade, será matriculado em uma nova instituição de ensino e precisará interagir com uma turma já entrosada nas atividades de alfabetização. Somente em 2017, o pequeno aluno acumula registros de sete escolas em seu caderno. A última foi em Venâncio Aires. Penúltima, Rio de Janeiro. Antepenúltima, Nova Iguaçu (RJ) . A próxima? Rio Pardo. Enquanto isso, é em Santa Cruz do Sul que estabelece uma rotina que já completa quatro semanas.
Amparado pela professora da Escola Ernesto Alves, Elisangela Mees, o aluno trabalhou nos últimos dias as vogais. “No primeiro dia de aula olhei o caderninho dele e depois fiz um ditado para entender em que nível ele estava”, explicou. Enquanto boa parte da turma já consegue decifrar as palavras, o pequeno Neto ainda apresenta certa dificuldade. Nada, entretanto, que comprometa o seu desempenho em sala de aula. “O que dificulta é essa “quebra” de sequência. Por isso eles têm o ritmo um pouco mais lento”.
Em sala de aula, a professora dos anos iniciais já está acostumada a lecionar para crianças nômades. Todo mês de outubro, por exemplo, dá aula para os filhos dos trabalhadores do parque de diversões que vem à Oktoberfest. A matrícula desses alunos – filhos de profissionais itinerantes – é assegurada por meio da Lei Federal 6.533/78, a qual assegura a mudança de escola em escola, mediante apresentação de certificado da instituição de origem. É por isso que o pai de Neto, o artista do Circo Italiano, Bartolo Júnior, guarda a sete chaves o tal documento, junto com o histórico escolar do pequeno. “Assim que definimos uma nova cidade e o espaço para a estada do circo, a primeira questão a providenciar é uma escola para os pequenos”, explica Júnior.
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Segundo o malabarista, dificilmente há contratempos na hora de garantir uma vaga. Basta levar a documentação para que no mesmo dia ou no seguinte, os pequenos já estejam matriculados. “Mesmo que queiram seguir com a vida de circo, eles precisam estudar. Sempre digo que com educação vão ser alguém na vida.” Nesse contexto, o pai acrescenta que a cobrança “em casa” – o interior do motorhome – é a mesma dos pais que têm trabalho fixo na cidade. “Depois da aula, a Paula (mãe) verifica o caderno e ajuda ele na lição. Só depois é que ele vai brincar ou acompanhar as atividades do circo”, finaliza. Além de Neto, Junior também é pai de Alice, 12, e Daniel, 14. Ambos estão no sétimo ano e também estudam no Ernesto.
Bartolo Júnior: matrícula dos filhos assegurada por meio da lei
Foto: Lula Helfer
Um mundo novo
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Apesar de já ter lecionado para alunos itinerantes, esta foi a primeira fez que Elisangela Mees foi desafiada a ensinar filhos de circenses. Sensibilizada com reportagem publicada pela Gazeta do Sul 19 e 20 de agosto, “Uma vida na estrada dedicada aos espetáculos”, ela resolveu trabalhar, ao longo de toda a semana, a temática com a turma de pouco mais de 20 alunos. Entre as atividades propostas, estiveram ditados, imagens para colorir e leituras como “O nosso colega Antônio é artista do Circo Italiano e o sonho dele quando crescer é ser homem pássaro e equilibista”. Durante uma das aulas, a turminha, em coro, repetiu a frase e fez questão de verbalizar os aprendizados da semana. “Foi uma experiência muito bacana, ainda mais porque o Antônio estava ali para compartilhar suas experiências com a turma. Um mundo novo foi apresentado”, disse Elisangela.
Elisangela já está acostumada a lecionar para crianças nômades
Foto: Lula Helfer
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Em sala de aula, colegas colaboram
A mesma metodologia adotada pela professora Elisangela, dos anos iniciais, também é empregada pela de matemática, Taciane Gerke. Conforme a docente que na estada do Circo Italiano leciona para três alunos itinerantes do sétimo ano, é fundamental que os estudantes levem o mesmo caderno utilizado nas outras instituições a fim de que se faça um acompanhamento de quais conteúdos já foram repassados. “A aula segue normal, mas dificilmente eu faço a mesma avaliação. É preciso fazer uma prova específica, conforme o que eles conseguiram assimilar nas semanas em que estudam por aqui.” Apesar dos desafios na hora de acompanhar o ritmo da turma, Taciane elogia a união entre os estudantes para ajudar os novos colegas. “É bonito de ver. Eles acham o máximo poder colaborar. E com certeza, isso faz a diferença”, finaliza.
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Choque entre duas formas de vida
Entre os principais desafios que essas crianças colocam para as escolas está o estilo de vida marcado pela transitoriedade. Segundo a psicóloga e professora do Mestrado em Educação da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Betina Hillesheim, trata-se de um choque entre duas formas de vida: nômade e sedentária. “Os alunos itinerantes estimulam o questionamento sobre o modo que costumamos entender a experiência escolar: como algo que se faz de forma gradativa, linear, seriada, e que necessita de um acompanhamento constante”, reflete.
Com passagens rápidas, esses alunos, segundo a pesquisadora, deixam inquietações sobre a forma de aprendizado, já que são avaliados por um parâmetro caracterizado pela “fixidez”. “Elas nos fazem olhar para outros modos de viver e também de aprender , pois, sim, elas aprendem, embora não necessariamente da forma como está prevista nos currículos escolares”, complementa.
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(Foto: Divulgação)
“Não sei estudar parada”
Estudo coordenado pela professora Betina Hillesheim junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisc entre 2010 e 2011 acompanhou uma menina filha de circense. À época, ela relatou aos pesquisadores “não saber estudar parada”. Na visão da pesquisadora, o estudo e a experiência de acompanhar a aluna ensinou que ao invés da preocupação com pontos de partida e chegada – próprios da escola –, a aprendizagem se coloca como um processo. E nessa trajetória, a questão é a caminhada. “Considero que um dos maiores benefícios da inclusão é o questionamento de nossos critérios do que é normal/anormal, adequado/inadequado. Um convite à reflexão sobre a forma como compreendemos o mundo”, finaliza.