É impossível determinar quem foi a primeira pessoa não heterossexual a viver e se assumir ao mundo – até porque a história da homossexualidade e da transgeneridade remonta ao início da própria humanidade, diferente do que pensam muitos preconceituosos de plantão. Ao longo dos séculos, foram tratadas de diferentes formas. Diversos pesquisadores e historiadores afirmam que a homossexualidade foi aceita em diversas civilizações ao longo da história, mas também subjugada à ira do preconceito em tantas outras épocas e sociedades. Não há dúvida de que existiram inúmeras histórias de lutas individuais e coletivas pelo simples direito de ser quem se é e de amar quem se ama. Incontáveis vítimas de violência, humilhação, invisibilidade. É impossível determinar quem levantou a voz pela primeira vez contra essa norma.
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Se fosse preciso, no entanto, olhar para um momento específico na história recente como marco do início da luta das pessoas que fogem à cisheteronormatividade, é senso comum a escolha entre a comunidade LGBTQIA+: a Revolta de Stonewall. Há exatos 52 anos, em um bar de Nova Iorque, nos Estados Unidos, um grupo de pessoas deu não o primeiro, mas um importante passo para a conquista de direitos da comunidade LGBTQIA+. Em resposta à truculência policial, o grupo não se calou diante de uma batida no bar Stonewall Inn e revidou. “A Revolta de Stonewall foi o marco, o início, o pontapé inicial”, comenta o presidente do Conselho Municipal da Diversidade de Santa Cruz do Sul (Comudi), Ruben Quintana (foto).
O movimento durou seis dias e deu origem ao Dia do Orgulho LGBTQIA+, lembrado neste 28 de junho. Mais do que um dia para celebrar as diferenças e o aprendizado, a data serve para lembrar a sociedade de que um caminho muito longo já foi trilhado, mas que ainda há duras batalhas a serem enfrentadas e vencidas na busca por igualdade. Essa mesma data deu início à realização de Paradas LGBTQIA+ ao redor do mundo, sendo a maior delas realizada anualmente em São Paulo, levando milhões de pessoas às ruas para expressar seu orgulho. Um momento festivo, de comemoração pelas conquistas já alcançadas e de confraternização, mas também reflexo de uma luta.
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“Muita gente não sabe, acham que a parada LGBTQIA+ é apenas festa, e na verdade ela é um grande protesto, no melhor estilo, que é o estilo LGBTQIA+. E aí vem o orgulho também, que é uma maneira de minimizar (o uso da palavra) ‘vergonha’, porque o termo foi muito usado durante anos e ainda é hoje, por muitos. Ocorre muito nas famílias: ‘vergonha de ter um filho assim’, por exemplo. Então o ‘orgulho’ é um contraponto, uma oposição a essa vergonha”, explica Ruben. Orgulho, neste contexto, é uma celebração de sobrevivência e luta.
A participação no evento em São Paulo, tanto de celebração quanto de protesto, é sonhada pelo santa-cruzense Francisco Egídio Ferreira Filho, de 29 anos. A data, para ele, representa a luta por direitos. “A gente precisa de leis que nos protejam e nos ajudem a sermos vistos pela sociedade como pessoas como qualquer outra. O dia 28 é muito importante para mostrar que sim, estamos aqui, lutando pelos nossos direitos. Direito meu de ser quem eu sou. Direito meu de ser respeitado”, diz. O tom de conscientização é compartilhado por Julio Augusto Ferreira Vianna, de 24 anos: “O dia 28 é importante para toda a comunidade LGBTQIA+, dia de comemorarmos nossas conquistas, nossas forças, nossas lutas, cada dia de sobrevivência e de lembrar algumas pessoas que não existe cura para pessoas LGBTQIA+.”
Júlio e Francisco, além de integrarem a comunidade LGBTQIA+ e serem estudantes de Marketing, têm um laço forte que os liga: o sangue. Eles são primos e encontraram um no outro, especialmente nos momentos de descoberta da própria sexualidade e identidade de gênero, a força que precisavam para lutar. Francisco, alguns anos mais velho que o primo, sofreu bullying desde a infância por ser diferente dos outros meninos da escola. Sempre mais próximo das meninas, era chamado por termos preconceituosos e pejorativos. “Mesmo não tendo noção da minha sexualidade, eu entendia que eu era errado. Quando eu tinha 15 anos eu comecei a entender que não, não era errado, e que eu era daquele jeito e ponto.”
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Foi nesta época que “saiu do armário” pela primeira vez, em conversa com duas amigas, temendo não ser aceito – sentimento certamente compreendido por muitas pessoas LGB-TQIA+ que já passaram pelo momento. “Tenho uma lembrança muito forte do momento em que contei para elas. Ao mesmo tempo em que eu estava me sentindo bem por dividir com alguém, eu sentia bastante medo, até porque eu não sabia como ia ser a reação delas. Quando contei, lembro que a Bruna, minha melhor amiga até hoje, segurou minha mão e disse: ‘Fran, as pessoas vão gostar de ti do jeito que tu é! Aí tu vais saber de verdade quem realmente gosta de ti ou não’. Isso me marcou tão forte que, desde então, eu levo isso como um lema para a minha vida”, lembrou.
A “saída do armário” de Júlio já foi diferente e mais tardia – e é importante entender que cada pessoa tem o seu próprio tempo para se descobrir ou assumir questões de gênero e sexualidade (ou mesmo não assumir). Foi ao fim da gestação do filho, que hoje tem dois anos, que Júlio começou a entender que não se identificava com o sexo que foi designado a ele ao nascer. “Eu sentia como se meu corpo não tivesse em conexão com a minha mente quando me enxergava no espelho. Assim foram dois meses sem me olhar no espelho, perdi totalmente a autoestima”, contou.
Nos últimos meses da gravidez, por complicações, precisou ficar em repouso e foi neste período que começou a entender a transexualidade. “Tirei esse tempo para me autoconhecer. Eu nunca havia pesquisado sobre pessoas transgênero, então busquei por depoimentos e perfis de pessoas trans para tentar me encontrar. Depois de muitas pesquisas acabei me encontrando e decidi procurar um psicólogo para conversar, pois ainda estava muito confuso com toda a informação”, lembrou Júlio.
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Foi no primo, que já havia se assumido para a família antes, que Júlio Vianna buscou forças. “Para mim foi algo natural quando o Júlio começou a se entender e se aceitar e expor isso para a família. Sempre apoiei e sempre vou apoiar”, ressaltou Francisco, que encontrou nos familiares o suporte que precisava. “Graças a Deus eu tenho a sorte de ter uma família que me ama, me aceita e me respeita, acima de tudo”. Júlio, apesar de não ter conversado com todos os familiares, percebe entendimento sobre a situação. “Tenho a convicção que desde pequeno venho deixando ‘pistas’ de que, de fato, sou homem trans”, comentou o santa-cruzense.
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Olhando para o passado, a fisioterapeuta Jossana Lau Rosa, 33 anos, também percebe que, desde a infância, sentia-se diferente daqueles que a rodeavam. “Me descobri jovem, tinha sentimentos que não sabia explicar desde a infância. O marco foi na adolescência, no segundo grau, quando minha família descobriu e eu nunca neguei. Mesmo não tendo ficado com outras meninas até a época, eu sabia (que era lésbica), era algo maior”, lembrou a encruzilhadense. No período, alguns familiares não aceitaram a sexualidade de Jossana, mas isso a fez lutar para ser quem é com ainda mais força. “Quando mudei de cidade para estudar na faculdade, todos eles entenderam e foi um processo de muita resiliência. Sou grata a isso. Hoje, tenho orgulho de poder ser quem eu sou, de amar verdadeiramente.”
Assim como Francisco e Júlio, ela acredita que o Dia do Orgulho LGBTQIA+ traz consigo dois lados importantes: “Agradecemos e pedimos por mais direitos, respeito, liberdade, equidade e amor. Devemos dialogar com quem se sente aberto para isso, esclarecer dúvidas e questionamentos dos demais, com respeito e calma. Tenho certeza que com empatia e amor só colheremos mais compreensão, igualdade e respeito.”
O diálogo como chave para erradicar o preconceito é corroborado por Ruben Quintana, que é presidente do Conselho Municipal da Diversidade de Santa Cruz e um dos fundadores da mais antiga organização LGBTQIA+ do município, a ONG Desafios, que completa 10 anos em 2021.
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A batalha pelo direito de ser quem é não é novidade para Ruben: hoje com 45 anos, ele se assumiu gay pela primeira vez aos 16, há quase 30 anos. E a luta, para ele, é diária e constante: “As lutas são todas. Começam dentro de casa, com respeito, com diálogo, com conversa, com conhecimento de causa. Nós temos que levar o conhecimento para as pessoas. E (a luta) vai para as ruas, desde o direito da pessoa poder manifestar o seu carinho, seu afeto em público”, comentou.
“Nós vivemos hoje um momento (em que se ouve), por exemplo, ‘ah, eu aceito, desde que não faça nada na minha frente’, ou ‘ah, eu aceito, mas vai demonstrar carinho dentro da tua casa’, ou ‘não faz nada na frente das crianças’. É um preconceito velado. Tem muitas pessoas que não demonstram um carinho, não saem de mãos dadas na rua, não trocam um afeto, um beijo em público porque sentem vergonha, acham que não pode. A gente tem que terminar com isso. A gente tem direito ao carinho, ao afeto. Não é vergonha, não contamina, não dá exemplo. Ninguém se torna homossexual porque viu alguém se beijando na rua”, destacou.
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Identidade de gênero (cérebro): identidade de gênero diz respeito à identificação pessoal, independente do gênero biológico. Há quem se perceba como homem, como mulher, como ambos (gênero-fluído) ou mesmo como nenhum dos dois (não-binários).
Orientação sexual (coração): a orientação sexual diz respeito à atração emocional, sexual e/ou afetiva por outras pessoas, aos relacionamentos.
Gênero biológico (símbolo): o gênero biológico diz respeito às características físicas, incluindo genitália, hormônios e cromossomos.
Expressão de gênero (linha pontilhada): expressão de gênero é a maneira como as pessoas apresentam seu gênero, por meio de ações, vestimentas e comportamentos, e como essas apresentações são interpretadas com base nas normas de gênero da sociedade.
O Dia do Orgulho LGBTQIA+ não passará em branco em Santa Cruz – pelo contrário, será bastante colorido. Uma das primeiras ações do Comudi, que teve diretoria empossada em 17 de maio, será justamente nesta segunda-feira: haverá ato em memória das vítimas de preconceito e intolerância (às 17h30, no Palacinho), iluminação especial no Palacinho da Prefeitura, manifestação de parlamentares na sessão ordinária da Câmara de Vereadores de Santa Cruz e início da mostra fotográfica “Eu Respeito! E você?”. O evento fotográfico será realizado de forma online, entre os dias 28 de junho e 5 de julho e é possível enviar imagens para o e-mail do conselho (conselhodiversidadedesantacruz@gmail.com).
O Comudi existe desde 2015, mas acabou sendo desativado e voltou ao funcionamento em 2021, já em planejamento de diversas ações. Desde a posse, realizada propositalmente no Dia Internacional de Luta contra a LGBTfobia, vem sendo realizado o levantamento das demandas a serem trabalhadas. “São muitas frentes, desde a área da saúde, segurança, assistência social e educação. São realmente muitas questões importantes, cruciais e delicadas para serem tratadas. Como, por exemplo, na educação, onde a gente passa por problemas diários e vários relatos de professores e alunos, desde o bullying até pessoas que se assumem na juventude, na puberdade”, comentou Ruben, adiantando, inclusive, que está sendo organizado um fórum para educadores, a acontecer em um futuro próximo.
A área educacional também é abrangida pelo o Ambulatório Multiprofissional de Atenção à Saúde da População LGBTQIA+ (Ambitrans) da Unisc. O projeto, que existe desde maio de 2019, realiza atendimentos a escolas e outras instituições que necessitem de assistência. “O projeto da Pró-Reitoria de Extensão Universitária foi criado por professores do curso de Enfermagem e congregou outros cursos da área da saúde, como psicologia, medicina, estética e cosmética”, explicou a professora Analidia Rodolpho Petry, coordenadora do Ambitrans e professora do curso de Enfermagem e do programa de pós-graduação em Promoção da Saúde.
Em suas ações, o projeto oferece atendimentos psicológicos e de saúde tanto individuais quanto em grupo para a comunidade LGBTQIA+ e famílias, dependendo das demandas levadas à instituição. Desde 2020, ainda oferece atendimentos online. “Transformação social só é possível através da inclusão social, que é um dos pilares da Unisc”, destacou a professora.
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