Relatar novidades, refletir sobre questões filosóficas e até falar sobre sentimentos era prática comum para quem escrevia cartas. As frases postas no papel alimentaram amores, contaram alegrias e tragédias e muitos destes contatos mudaram a vida de seus interlocutores com novas ideias.
Isso ocorreu por centenas de anos, até a prática ser substituída por outras mídias, nas últimas décadas. O hábito foi se perdendo com o advento das tecnologias de comunicação e substituído por ligações telefônicas, e-mails e troca de mensagens de texto. No entanto, um grupo em Santa Cruz do Sul tem se dedicado a trocar missivas cheias de ideias.
O Grupo de Leituras de Clássicos e Fundamentais surgiu no ano passado. Conforme a idealizadora dos encontros, a escritora Marli Silveira, os amigos se reúnem para ler trechos de obras reconhecidas, que, pela sua importância estética, literária e filosófica e compreensão da condição humana, se inscrevem como significativas. O grupo passou a trocar correspondências, que apesar de enviadas no meio digital, possuem o conteúdo de cartas escritas. O novo hábito veio em momento oportuno: pouco antes do distanciamento social imposto pela pandemia.
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Os integrantes que ganharam o nome de “Marlianos”, em homenagem à idealizadora, usam as missivas para expandir os assuntos lidos, além de tratar de uma série de temas. “Muitas e importantes obras, não apenas no campo literário, são oriundas de trocas de correspondências, bilhetes, impressões. Além da possibilidade de se reconhecer o valor estético e humanístico dessa escritura epistolar, devemos reconhecer o valor formativo implicado na escrita de cartas.” Marli cita os exemplos das cartas trocadas entre Sigmund Freud e a sua filha Anna, Van Gogh e o irmão Théo, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral e Walter Benjamin e Theodor Adorno. “Acredito, como outros estudiosos do tema, que a literatura, e aqui quero destacar e incluir a escrita, se colocam como exemplares no encurtamento das distâncias entre os indivíduos”, conta.
Um dos participantes do grupo, o geólogo e escritor José Alberto Wenzel, conta que dentre os temas trabalhados nos encontros estão as Cartas a Lucílio de Sêneca e outros pensadores, como Italo Calvino. “Tratamos de diferentes assuntos, geralmente vinculados ao tema de que estamos tratando nas reuniões. Minha primeira carta ‘aos Marlianos’ trata da morte”, relata.
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A forma de receber as cartas sempre foi diferenciada, pela expectativa de ler o conteúdo, segundo Wenzel. “Basta lembrar o quanto eram aguardadas as cartas que vinham pelos correios ou por mãos de pessoas encarregadas por entregá-las. Hoje as mesmas cartas podem ser remetidas instantaneamente, mas continuam sendo cartas e não apenas mensagens rápidas.”
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Além de debates filosóficos e sociopolíticos, os momentos de encontro permitiram a construção de uma grande amizade entre os participantes, de acordo com o estudante de História, Cícero Schneider. “As discussões prolongavam-se com muita facilidade e a escrita das cartas veio como uma oportunidade de cada um de nós explorarmos ideias, sentimentos e pensamentos que tínhamos a partir de nossos encontros.”
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Para o estudante, as cartas são diferentes de outras formas de comunicação, como o WhatsApp. “É muito mais intenso. Nas cartas, sinto que consigo relatar uma experiência com muito mais inspiração, até porque o objetivo delas não são apenas contar nossas experiências, mas pensar sobre elas”, relata. Para ele, a troca de cartas ainda inspira os encontros do grupo de leituras, já que muitas boas ideias surgem no ato de escrever as cartas.
Interessados em fazer parte do Grupo de Leituras de Clássicos e Fundamentais podem entrar em contato diretamente com os participantes. Os encontros aos sábados de manhã continuam sendo à distância, mas quando retomados devem acontecer na Casa das Artes Regina Simonis, na Unisc ou na residência dos integrantes.
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Escrita e tecnologia
Marli conta que, sem desmerecer a importância das novas mídias e recursos tecnológicos, as pessoas acabam se distanciando de si mesmas. “Somos absorvidos por uma espécie de armação que atira sempre e cada vez para mais longe os sentidos da realização. Uma sociedade excitada ao extremo, tornando menos perceptiva e aberta nossa corporeidade para os toques e sentidos do belo próprio do simples, dos toques, do habitar por entre as gentes.”
Wenzel acredita que as cartas são diferentes de outros meios, porque exigem um tempo de reflexão e aproximam as pessoas, especialmente neste momento de pandemia. “Cartas permitem profundidades, ousadias e até travessuras. Se pode falar com maior leveza, sem as amarras conceituais e metodológicas. Justamente nestes tempos de tanta tecnologia a carta cresce em importância, pois a alma se expressa melhor nas letras inteiras que buscam sempre mais linhas do que abreviadas que se consomem em recados.”
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Já Cícero, que é o mais jovem do grupo com 22 anos, acha a experiência muito prazerosa e como parte de uma geração mais tecnológica, acredita que escrever cartas é um grande exercício de criatividade e imaginação. “Sempre imagino uma situação de escrita de cartas como realmente ocorria, com um destinatário distante, a quem eu desejo contar tudo o que me acontece e me passa pela cabeça. A única diferença é que escrevemos pelo computador e mandamos os textos por e-mail, o que quebra um pouco o clima. Porém, não deixa de ser uma experiência muito boa, tanto no sentido do sentimento que ela evoca como, também, no exercício da criatividade e da escrita”, conta.
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CARTAS
“Carta à escritora Marli Silveira, poeta Santa Cruz do Sul, 4 de dezembro de 2019
Estimada escritora, Ao dares o tom de nossas cartas acentuas o ‘encantamento com o tempo’ sem nos perdermos com a ‘sensação de que não somos nada.’ Em alguma medida me ative, nestes últimos tempos a querer empurrar o tempo, quase o encurralando, para o corner da pressa, como se fosse possível, conhecer a morte na sofreguidão de quem percebe os dias passarem mais rapidamente que meus já 67 anos de vida. Conclamas a poética que, talvez, possa ser a linguagem de manifestação da morte. Quando falas em poética asseguras ao tempo sua suficiente permanência, seu adequado vagar na busca pela completude experimental no propósito de “entregar a cada um dos outros” uma possibilidade de vida melhor. Viveriam melhor as pessoas se antes compreendessem a morte? Dia a dia avoluma-se a percepção de que por não compreendermos a morte em seu fluxo natural e por não aceitarmos nossa condição de finitude acabamos por culpar a natureza por nossa organicidade, pois ao desejarmos a perpetuidade almejamos a sobrenaturalidade que só seria alcançada através da indesejada morte, com o que nos desnaturalizamos e patrimonializamos depreciativamente a própria natureza, da qual somos intrínsecos coexistencialmente. Por certo nossas cartas nos ajudarão mutuamente nesta e noutras possibilidades e, em nos auxiliando, os demais também disso poderão auferir.
Esperançosamente, Com estima, José Alberto Wenzel”
“Carta aos Marlianos, da amizade Santa Cruz do Sul, 10 de dezembro de 2019
Amigos, Quando comecei a escrever esta carta, reli, mentalmente, algumas das discussões dos nossos encontros. Procurei encontrar palavras para descrever o que se sente quando começamos a construir relações afetivas a partir do encontro amoroso com o saber. Insinuei utilizar as definições de Sêneca, cheguei a reler algumas anotações sobre a obra Lísis, de Platão. Ouvi-me dedilhando sonoramente o texto “A amizade”, atribuído ao poeta Fernando Pessoa. Considerei, contudo, que a poesia de uma escrita desentranhada da ambiência da amizade que estamos esticando nas horas dos nossos dias, deveria compor o meu esforço em dizer-nos. Creio que não definir seja o percurso mais honesto, impedindo que o que julgamos ser o nosso todo se entregue sem qualquer receio. Deixemos antever sentidos guardados e que também nos guiam na direção dos outros. Há detalhes, tonalidades, cheiros, o não-ser, pautando jornadas que cada um toma para si e que se transformam em expediente de uma existência inteira. Quando procuro definir a amizade, pelo menos uma parte dela morre na certeza do que dela mesmo digo, pois o outro lado cala-se para deixar ser o que se vincula ao mostrado. Considero que meus amigos frequentam meus anseios, habitam as cercanias dos sonhos ladrilhados no compasso da companhia, lastimam a dor e o ódio, choram a violência e o preconceito, entregam-se de “alma” exposta aos imprevisíveis lugaresfim, rasgando a própria pele para fazer sentir aos ainda ineptos “sentidores”. Considero que meus amigos sentem medo, erram e, inclusive, podem preferir a solidão ao convívio. Seriam incapazes, porém, de não compreender que compreender é uma disposição, como tal, situada à beirada do outro.
Com carinho, Marli Silveira”
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