O cineasta norte-americano David Lynch é conhecido por filmes ao mesmo tempo enigmáticos e fascinantes. Veludo Azul, Cidade dos Sonhos, O Homem-Elefante e a série de TV Twin Peaks são alguns deles. Assim, não é de se estranhar que sua autobiografia, Espaço para Sonhar (Bestseller), que chega agora ao Brasil, também não siga as regras comuns. O diretor convidou uma amiga, a jornalista Kristine McKenna, para escrever em conjunto, mas com um formato nada trivial: Kristine fez mais de cem entrevistas, consultou datas e checou versões para produzir cada capítulo.
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Esse texto era lido e corrigido por Lynch que, em resposta, escrevia outro capítulo, mais pessoal, no qual reflete sobre as recordações dos outros para desenterrar as suas próprias. Como a dupla informa no prefácio do volume, o que se lê é uma pessoa conversando com a própria biografia. A sensação provocada no leitor é semelhante à de assistir a um filme, com seu diretor sussurrando como foi arquitetada cada cena.
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Em uma carreira iniciada com o longa Eraserhead, em 1977, Lynch sempre exibiu uma enorme disposição em desvendar o lado desarticulado dos valores mais prezados pela sociedade americana, o que se tornou notável em obras como Veludo Azul e Coração Selvagem. Trabalhos que não provocam uma imediata identificação do espectador, que só vai descobrir isso depois, quando o incômodo se transforma em algo familiar.
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Lynch, de fato, é o artista que transformou o cinema em uma alucinante mistura de tempo, espaço, sexo e morte. O curioso, como ele revela no livro, é que tais ideias não nascem necessariamente de sonhos, mas de sua predileção por boas histórias. A origem do sucesso Twin Peaks, aliás, nasceu quando ele descobriu que um crime não desvendado, ocorrido na região onde passou a infância, não despertava mais nenhuma atenção: uma moça havia sido encontrada morta, com marcas de violência. Segundo ele, ninguém na cidade se interessava em ajudá-lo a recuperar a história, nem mesmo tinha curiosidade em saber quem tinha sido o autor do crime.
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Mesmo com 600 páginas, o livro apresenta muito pouco da personalidade de David Lynch, como lamenta o próprio. “Isso é só a ponta do iceberg”, observa, no parágrafo final, no qual arremata: “Em última análise, cada vida é um mistério até que cada um de nós o resolva, e é aonde todos vamos, saibamos ou não”.
Fragmentos da vida
Em uma carreira com 84 produções assinadas pelo seu nome (entre longas, curtas e programas de TV), o diretor David Lynch conheceu e trabalhou tanto com figuras estelares como anônimos que lhe renderam grandes histórias. Um exemplo do último tipo é o drama verdadeiro vivido por um viúvo de 70 anos que inspirou o filme História Real – ao descobrir que o irmão sofreu um derrame, ele decide pôr fim ao período de mais de dez anos de afastamento e cruza o país em um pequeno trator.
São esses pequenos personagens, cujas histórias revelam grandes almas, que sempre interessaram Lynch, como se observa na autobiografia Espaço para sonhar. É o caso também de John Merrick, principal personagem de O Homem- Elefante, longa de 1980 que teve a produção de Mel Brooks. O homem que viveu no final do século 19, em Londres, como uma aberração (sua aparência era deformada por causa de uma doença congênita), encantou o diretor justamente por sua inteligência e sensibilidade, que contrastava com seu pobre visual.
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O livro detalha a provação diária passada por Lynch, então um jovem cineasta americano que despertava a desconfiança de refinados atores britânicos, especialmente Anthony Hopkins. Em uma das passagens da biografia, um irado Hopkins questiona os produtores sobre a capacidade daquele rapaz – anos depois, o ator se desculpou.
ESPAÇO PARA SONHAR
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