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Cidadão? Não

“Cidadão, não. Engenheiro civil formado, melhor do que você.” O vídeo em que uma mulher – a pretexto de defender o marido em discussão com um fiscal da Vigilância Sanitária – lançou essa frase foi replicado à exaustão na internet. A cena foi registrada durante inspeção em um bar na Barra da Tijuca, no Rio, onde se verificou desrespeito às normas de prevenção da Covid-19. As consequências foram imediatas e sérias. Com a divulgação massiva do vídeo, ela, que é engenheira química, perdeu o emprego – a empresa disse compartilhar “a indignação da sociedade em relação ao lamentável episódio” – e, juntamente com o marido, tornou-se alvo do esporte preferido nas redes sociais, o linchamento virtual. E não ajudou em nada o marido formado ter pedido o auxílio emergencial de R$ 600,00 do governo. Mais tarde, seguiram-se os pedidos de desculpas e justificações comuns nesses casos, “não quis ofender” etc.

A questão é que as pessoas decididamente estão fartas do velho “você sabe com quem está falando?”, a arrogância de quem se julga socialmente superior, seja por ter mais dinheiro ou formação mais qualificada. A situação do casal na Tijuca ficou até risível, pois o fiscal confrontado é superintendente da Vigilância Sanitária na Prefeitura do Rio, tem mestrado e doutorado – ou seja, possivelmente ele é “melhor” do que os dois juntos. Ironias da vida.

Mas o curioso é o significado pejorativo atribuído ao termo “cidadão”. Pelo Dicionário Aurélio, a palavra designa o “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este”. Ora, por que isso ofenderia alguém? Podemos especular a respeito. Talvez porque a palavra evoque diretamente “cidadania”, condição em que os integrantes de uma sociedade democrática se reconhecem como iguais no exercício de direitos e deveres. É uma forma horizontal de enxergar as coisas. Assim, para quem tem uma visão vertical do mundo, na qual existem “inferiores” e “superiores” por natureza, “cidadania” é um conceito que não faz muito sentido. Talvez seja até uma ideia “comunista”, vá saber. Melhor não arriscar.

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A historiadora Lilia Moritz Schwarcz lembra que o termo “cidadão” remete a morador das cidades, ambiente teoricamente mais horizontal do que o de um feudo, de uma grande propriedade. E onde as leis são iguais para todos. A ideia de que regramentos institucionais existem apenas para os outros é, portanto, um resquício feudal. A exigência de status privilegiado é, lá no fundo, uma concepção medieval. Um fator de atraso.

O maior perigo nessa ilusão de superioridade é a pessoa começar a se achar um super-homem, um ser acima de qualquer coisa, inclusive de doenças causadas por vírus para os quais não há vacina. Porque a estupidez, depois que encontra solo firme, desconhece limites.

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