Quando o letrista e compositor Aldir Blanc morreu, em maio de 2020, aos 73 anos, vítima da Covid-19, além da família, ele deixou órfãs figuras da sociedade brasileira que para muitos – jamais para ele – parecem ser invisíveis. Cronista de mão cheia, nas letras, Aldir rendia glórias a trabalhadores rurais, moradores do subúrbio, balconistas, passistas, quilombolas, público da antiga geral do Maracanã, seres divinais das encruzilhadas, mães de santo, camelôs, apontadores do jogo do bicho, mulheres que amam demais, torturados, entre outros. Por outro lado, denunciava torturadores, censores, sogras impertinentes e críticos mordazes.
Apesar da ausência física de Aldir, a genialidade dele revive no álbum Aldir Blanc Inédito, que reúne 12 letras escritas por ele e jamais gravadas anteriormente. Com capa assinada pelo artista gráfico Elifas Andreato – que mostra a escrita precisa do compositor -, o lançamento está disponível nas plataformas digitais e, em breve, deve ganhar edição física pela gravadora Biscoito Fino. A ideia do álbum nasceu quando a viúva de Aldir, Mary Lúcia de Sá Freire, procurou a editora Nossa Música, braço editorial da Biscoito Fino, para organizar os guardados do compositor. Por intermédio da cantora e ex-ministra da Cultura Ana de Hollanda, a ideia de um álbum chegou à gravadora.
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A partir daí, começou o garimpo com parceiros de Aldir para formar o repertório. No estúdio, o pianista Cristóvão Bastos, companheiro do compositor em um dos grandes sucessos populares, Resposta ao Tempo, canção gravada por Nana Caymmi em 1998, ficou responsável pelos arranjos. O baixista Jorge Hélder foi chamado para a direção musical. As canções foram confiadas a João Bosco, Maria Bethânia, Chico Buarque, Leila Pinheiro, Guinga, Moacyr Luz, Dori Caymmi, Joyce Moreno, Ana de Hollanda, Moyseis Marques, Sueli Costa, Alexandre Nero e Clarisse Grova.
Bosco, um dos primeiros parceiros de Aldir, dá voz ao samba Agora Sou Diretoria, que remete aos velhos tempos da dupla, nos anos 1970. A letra fala de uma reunião de amigos em um bar, entre louras, canapés e admiração a poetas como Drummond e João Cabral. A canção composta pelos dois para uma campanha publicitária de cerveja nos anos 2010 não foi aproveitada à época. Para o disco, Bosco fez alguns ajustes nos versos.
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Bethânia dá voz à canção de amor Palácio de Lágrimas, de Aldir e Moacyr Luz. A cantora baiana já havia gravado, ao longo da carreira, outras três canções dessa parceria – Medalha de São Jorge, Rainha Negra e Remanso. Luz, que por mais de duas décadas morou no mesmo prédio de Aldir, na Muda, região do bairro da Tijuca, diz que o compositor fez a música, anos atrás, já para a interpretação da cantora, que não a gravou na ocasião.
Igualmente de Blanc e Luz, dessa vez com adesão também de Bosco, é o bolero Acalento, com todas as dores do mundo às quais o gênero tem direito, que coube a Ana de Hollanda interpretar. “Nos guardados de Aldir, havia indicações para quem ele havia escrito aquilo. Ele sempre me disse que eu, ele e Bosco deveríamos ter uma canção juntos. Aconteceu agora”, lembra Luz.
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A terceira dos parceiros, com colaboração de Luiz Carlos da Vila, é Mulher Lunar, à qual o próprio Luz deu voz. Os três já haviam se unido no sucesso Cabô, Meu Pai. “Aldir dedicava um dicionário para cada parceiro. Com João é um tipo de música, com o Guinga é algo mais vanguardista, comigo é mais o samba. Isso me impressiona. É como se ele protegesse cada um”. Aldir e Luz fizeram juntos Coração do Agreste, trilha da novela Tieta, de 1989, interpretada por Fafá de Belém. Entre tantas recordações que guarda do amigo e vizinho, uma, relacionada a essa música, é especial. “No último capítulo, eu fui para o apartamento do Aldir, e ficamos na janela. Vimos as casas com aquele azul da TV. Todo mundo assistindo e ouvindo nossa música tocar no final da novela”, conta.
Joyce Moreno, apesar de amiga do homenageado, nunca havia trocado versos e melodias com ele. A parceria póstuma foi feita por meio de um poema de inspiração feminista publicado por Blanc no jornal Tribuna da Imprensa, em 1986, com o título Aqui, Daqui. Ainda no campo das relações amorosas, ou dos desencontros, Voo Cego, de Aldir com o pianista Leandro Braga, é cantada por Chico Buarque, com o toque do cello do músico Jacques Morelenbaum. A parceria de Cristóvão Bastos e Blanc coube a Dori Caymmi. O samba-canção Provavelmente em Búzios traz versos que parecem um testemunho da profissão de compositor.
Letra que parece ter endereço certo, Outro Último Desejo foi enviada à cantora carioca Clarisse Grova por e-mail – essa era uma das formas preferidas de Aldir para se comunicar. Como o título indica, a música faz um paralelo com o samba de Noel Rosa, de 1938. Blanc se mostra mais contundente do que o poeta da Vila. Em vez de “às pessoas que eu detesto”, ele escreveu “aos canalhas que eu odeio” e atesta que o remédio é mesmo o “botequim”, como Noel indicou.
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Das preocupações históricas, políticas e sociais – temas essenciais na obra do compositor – há a faixa Navio Negreiro, feita com outro habitual parceiro, o violonista Guinga. A canção dos anos 1990 estava em posse da cantora Leila Pinheiro em uma fita que Guinga lhe entregou por ocasião do disco Catavento e Girassol, de 1996, no qual ela canta só a parceria dos dois. Na gravação, Leila faz dueto com Guinga, que empresta um canto negro, de lamento, à letra. “Nos jogamos juntos e emocionados dentro deste Navio Negreiro. Enquanto cantava, pensei também nos refugiados dos nossos dias, massacrados e mortos nos barcos afundados nos oceanos. A escravidão, o preconceito de cor e a exploração humana, infelizmente, seguem muito vivos nos nossos dias. Aldir certamente cairia em prantos ouvindo essa canção”, afirma Leila.
A cantora destaca o conhecimento profundo que Aldir tinha da alma humana – o compositor era formado em psiquiatria. “Somada a isso, a presença assídua nos bares e na boemia carioca – escola maior não há”, completa. “Não há neste país e quiçá no mundo poeta/letrista/cronista e o escambau (como ele diria) que se assemelhe ao Aldir. Ele é inigualável, incomparável e insubstituível”, diz.
Da mesma mancha torturada a que Aldir se referiu no clássico O Bêbado e a Equilibrista é feita Ator de Pantomima, composta com Sueli Costa em 1978. Usando da principal arma naqueles tempos de ditadura – a metáfora -, ele fala de farsas, reis e a ridicularização da morte nos porões do regime. Ainda deixa clara a ojeriza àquilo tudo ao afirmar que jamais experimentaria daquela bebida amarga. Antes de morrer, Aldir ainda teve tempo de escrever o que pensava sobre a Covid-19, doença que o vitimou. Feita a partir de trechos de poemas, ideias e bate-papos que tinha via e-mail com o ator e músico Alexandre Nero, nasceu Virulência.
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A letra mostra que o compositor também estava preocupado com questões macros, como “quilombolas e guajajaras machucadas na floresta” e com um “governo deserto”. Além de Nero, o músico Antônio Saraiva também está na parceria. “Apesar da idade, Aldir não era um homem acomodado, muito ao contrário. Estava incomodado e queria incomodar. A intenção da letra é muito essa: ele estava engasgado com tudo e se manifestava assim, mostrando a sua cara, expondo a sua indignação”, lembra Nero. Quando o ator se aproximou de Aldir – por correspondência virtual – a intenção era montar um espetáculo com a obra do compositor.
Aldir Blanc Inédito, portranto, não deve ser o único projeto com letras inéditas do compositor. Leila afirma que “há muito mais” no baú do qual ela resgatou Navio Negreiro. Moacyr Luz também tem outras tantas letras, muitas escritas para novelas – são 18 -, sob encomenda, que não foram gravadas. Uma delas, Muito Além do Jardim, de 2002, ele deu recentemente ao cantor carioca Augusto Martins. Em antigas gravações ou músicas inéditas, as ideias de Aldir Blanc sobrevivem e, por meio delas, é possível dar glória a tantas lutas inglórias.
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