Este sábado, 22 de janeiro, marca a passagem do centenário de nascimento, em 1922, de um dos mais proeminentes políticos brasileiros do século 20. Leonel Brizola (de nome completo Leonel Itagiba de Moura Brizola) era natural de Cruzinha, então pertencente a Carazinho e hoje município, de onde partiu para jornada que o tornou o único a ser governador em dois estados distintos do Brasil, o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro, neste segundo caso inclusive se reelegendo. Foi igualmente candidato a presidente em duas ocasiões (1989 e 1994), além de vice na chapa de Lula em 1998. Faleceu em 21 de junho de 2004, aos 82 anos, no Rio de Janeiro, vítima de insuficiência pulmonar, seguida de infarto no miocárdio.
Brizola projetou-se a partir do momento em que liderou a Campanha da Legalidade, em 1961, defendendo a posse do vice-presidente João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, e fazendo frente, assim, aos interesses dos ministros militares. Com a queda de Goulart e a subida ao poder dos militares, em abril de 1964, teve de sair do País, fixando-se por mais de uma década no Uruguai, e posteriormente solicitando asilo aos Estados Unidos, de onde se transferiu para Portugal. Só voltou ao Brasil, ingressando por São Borja, na véspera do dia 7 de setembro de 1979, ao final da tarde, e desde então liderou a criação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), pelo qual concorreu nas eleições a governador e a presidente.
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Na vida pessoal e familiar, Brizola fora casado com Neusa Goulart Brizola (irmã de João Goulart), nascida em São Borja um dia antes do marido, em 21 de janeiro de 1922, e falecida no Rio de Janeiro em 7 de abril de 1993. O casal teve três filhos, todos já falecidos: José Vicente (1951-2012), que seguiu a carreira política do pai e se elegeu deputado em 1990, pelo Rio; João Otávio (1952-2017), que foi arquiteto; e Neusa Maria, a Neusinha (1954-2011), que ensaiou carreira como cantora. O sobrenome da família Brizola segue na política nos dias atuais, com a deputada estadual Juliana Brizola, no Rio Grande do Sul, filha de José Vicente.
A história de Leonel Brizola com Santa Cruz do Sul, após o retorno do exílio e ao longo de toda a carreira política posterior, tem relação com um endereço. E, em função disso, com uma família. O endereço, aliás, homenageia outro político gaúcho. É a Rua Senador Pinheiro Machado, em residência hoje nos números 810 e 814 da via, mas que no período em que Brizola veio à cidade correspondia ao 806, sede do Diretório municipal do Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Ali era (e ainda é) a moradia da família Faller. Foram eles, seu Milton, falecido em 2009, e a esposa Miriam, hoje com 83 anos, filha de Bruno Agnes, expoente do antigo Partido Social Democrático (PSD), quem hospedaram Brizola em 1979, semanas após ter retornado do exílio. Na ocasião, o líder trabalhista veio à cidade para se encontrar com lideranças locais. Chegou, pernoitou na casa deles, e no dia seguinte participou de um café da manhã épico, que ficou na memória de Brizola. “Ele próprio havia sugerido que a gente servisse um café colonial à moda de Santa Cruz”, recorda dona Miriam. “E a gente se esmerou. Tinha schmier de tudo que era tipo. E veio tanta gente participar do café que era um entra e sai. O ambiente em que a gente preparou a mesa ficou completamente lotado”.
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A razão para a visita era pontual: Milton era forte interlocutor do político que acabara de retornar ao País. Não por acaso, tornou-se o primeiro presidente do PDT, tão logo fundado no município. A ligação transparece em muitas fotos daquela visita, feitas na época pelo fotógrafo Ataídes de Souza. Numa, Brizola sorve um mate, com a cuia na mão, enquanto conversa em pé de ouvido com Faller, e até apôs autógrafo a ela em uma vinda seguinte, em 1981.
Quem também tem memória intensa daquelas horas de convívio com Brizola é um dos filhos de Milton e Miriam, Bruno Faller, hoje aos 53 anos, e em segunda legislatura como vereador de Santa Cruz. Por qual partido? Só poderia ser pelo PDT. Bruno tinha 11 anos na época da visita; O irmão Carlos tinha 4, e a irmã Marisa, 1 ano. Ainda que não tivesse participação efetiva nas conversas, ele recorda da forte impressão que Brizola transmitia, um carisma raro, que cativava a todos. Tão logo completou 21 anos, Bruno filiou-se ao partido. A exemplo do pai, que assumira a presidência, por 12 anos ocupou essa função, a primeira em 1996. Em 2004 foi inclusive candidato a vice-prefeito, em chapa com Osmar Severo, e então se elegeu vereador em 2016.
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Dos três irmãos, Bruno, talvez por ser o mais velho, foi o único que seguiu os passos do pai na política (hoje, tem um escritório no segundo andar do mesmo prédio familiar no qual era o Diretório). E, filiado ao PDT que o pai ajudou a fundar e Brizola estruturou ao retornar do exílio, nunca mais saiu das fileiras do partido. “Aos 20 e poucos anos, como é comum acontecer, até tive minha crise existencial, refletindo sobre minha ligação com essa legenda e pensando se deveria continuar vinculado, num tempo em que muitos trocavam de sigla”, recorda. “Estudei muito, e concluí que a missão e os valores defendidos pelo trabalhismo, como o PDT o faz, realmente eram muito importantes. Minha convicção foi a de que eu devia dar continuidade a esse legado, que afinal é o de meu pai, e, claro, também do Brizola e dos demais companheiros deles”. E Bruno refere um dos grandes pilares sempre defendidos e enaltecidos por Brizola: a educação. “Isso vai ser sempre muito atual, sempre imprescindível.”
Daqueles dois dias em que Brizola conviveu com eles na casa dos pais, Bruno Faller recorda que uma verdadeira procissão de expoentes locais e regionais da política passara pelo local: estavam lá (e aparecem registrados em fotos) o deputado Matheus Schmidt, Júlio de Oliveira Vianna, o futuro vereador Nilton Garibaldi, Olinto Felisberto, entre outros. E Bruno recorda que pela casa, construída ao lado da residência do avô materno Bruno Agnes, passaram e pernoitaram outros personagens ilustres, como o bispo dom Aloísio Lorscheider e o Marechal Lott – o mineiro Henrique Teixeira Lott, candidato à presidência da República nas eleições de 1960.
Brizola seguiu sempre em contato com a família, e Bruno se reportava a ele quando já presidia o PDT local. Em 1981 e 1982 viera de novo à cidade, para participar de comício. E outra vez em 1991. Bem como nas campanhas à presidência, incluindo a vez em que concorreu como vice de Lula, em 1998. A família guarda uma foto da vinda dele a Santa Cruz para apoiar a candidatura de Alceu Collares ao Piratini em 1991. Os dois, ao lado de outros políticos, como João Gilberto e Cláudio Grehs, aparecem sobre a carroceria da camioneta Chevrolet branca que pertencia aos pais (quem dirige é o pai Milton, com a irmã Marisa ao lado, na cabine) desfilando por ruas da cidade. Grehs, por sinal, viria a ser o sogro de Bruno: é casado com a filha dele Christine, e com ela tem a filha Roberta, de 19 anos.
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Bruno e Christine guardam passagem pitoresca. Em certa ocasião, quando na presidência do PDT local, ele e a esposa foram passear em Montevidéu, e lá se dirigiram a um shopping. “A certa altura, a Christine me disse: aquela lá não é a Neusinha Brizola? Olhei e vi que era. E calculei que, se a Neusinha estava por ali, provavelmente o pai também estava. Não deu outra. Vi ele de costas, por trás de uns aquecedores. E fui me apresentar”, recorda Bruno. “Ao puxar conversa, disse que era de Santa Cruz e referi o famoso café da manhã, do qual o Brizola sempre lembrava. E ele disse: ‘Mas vê só, eu falei em ti ontem!’ Eu pensei comigo que ele devia apenas estar sendo gentil. Mas não. Citou um documento que eu havia enviado ao Diretório Central do partido, solicitando orientação sobre uma possível filiação, e ali mesmo me deu sua opinião. E ainda disse que se tivesse algum problema para justificar a decisão, bastaria pedir para ligarem para o Diretório no Rio, que faria questão de confirmar a orientação que me dava. Ele era de uma memória e um posicionamento raros”, frisa Bruno.
Ao longo de sua trajetória, Brizola sempre teve ligação com Santa Cruz do Sul e a região. Porém, um contato da cidade foi mais do que especial não só para o político, mas para toda a família. Por um acaso do destino, uma santa-cruzense se tornou a governanta da casa e educadora dos filhos dele. Irma Lau, hoje com mais de 90 anos, guarda com carinho as lembranças do período em que conviveu com Brizola, a esposa Neusa e os três filhos, como poucas outras pessoas, inclusive as até bastante próximas, puderam fazer.
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Irma é filha do professor Alfredo Lau, casado com dona Elsa Molz Lau, casal que teve ainda mais cinco filhos (eram quatro meninas e dois meninos). Cresceu entre Travessão Dona Josefa e Rio Pardinho, onde posteriormente à morte precoce do pai, com 36 anos, por derrame fulminante, a mãe havia se fixado com os filhos. Desde muito nova, por influência do pai, que possuía uma ampla e eclética biblioteca, boa parte dela de obras em língua alemã, aprendeu a ler. Frágil, asmática, não podia ficar muito ao ar livre, e mesmo na adolescência, por volta dos 18 anos, seguia doente, atacada por amebas.
Transferiu-se então a Porto Alegre para estudar e trabalhar, e por indicação de um conhecido, que atuava na política, aos 27 anos ingressou na equipe de apoio do Palácio Piratini. Chegou a esse espaço público, como recorda, ainda antes da eleição de Brizola para governador, pois já atuava lá quando este se fixou no palácio com a família, em 1959, aos 36 anos. Dona Irma esteve junto na rotina do clã Brizola por cinco anos, justamente os mais dramáticos da história naquele início dos anos 1960, da Campanha da Legalidade, e só ficou longe deles no momento em que tiveram de fugir rumo ao exílio, no Uruguai, em maio de 1964.
Pela proximidade com o mundo do poder, em 2016 ela recebeu o título de Cidadã Honorária de Santa Cruz do Sul, por iniciativa do então vereador Edmar Guilherme Hermany. Na ocasião, elaborou uma ampla autobiografia, na qual detalha sua incrível história, não só a do tempo junto da família Brizola como a dedicação posterior à tradução de obras da língua alemã e ainda a formação em contabilidade e ótica, área esta na qual integrou uma empresa criada juntamente com os irmãos, em Porto Alegre. Residiu na capital por meio século, até finalmente retornar e se fixar na residência da família em Rio Pardinho. Hoje, todos os irmãos são falecidos, assim como estão mortos os integrantes da família Brizola, com a qual conviveu naqueles fatídicos primeiros anos da década de 1960.
Em entrevista para a Gazeta do Sul, na última terça-feira, 18, no ambiente da geriatria na qual reside atualmente, dona Irma confirma que antes do convívio com o então governador, pouco sabia ou conhecia dele. No entanto, passou a admirar esse personagem, a quem não hesita em descrever como “íntegro, honrado, honesto, digno e verdadeiro”. Com memória privilegiada, cita que ocupava um apartamento no andar térreo do Piratini, próximo à Igreja Matriz. Recorda que dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre entre 1947 e 1981, ia com frequência ao palácio. E a função pessoal dela era principalmente dar atenção aos três filhos de Leonel e Neusa (José Vicente, João Otávio e a caçula Neusinha, que em 1959 estava com 5 anos). Irma cita que, dos três, o do meio, João Otávio, nascido em 1952, era o que mais requeria cuidados, pois atrasara muito o crescimento, o que motivara os pais a buscar tratamento fora do país.
No período em que esteve junto da família no Palácio Piratini, lembra Irma, conheceu de perto algumas das mais expressivas figuras da política nacional e internacional. Isso ocorria em muitos casos nas viagens que a família fazia a cada final de ano ao Rio de Janeiro, e que ela integrava, ficando três meses na então capital do Brasil. Ocorre que Brizola lutara justamente para que o cunhado, João Goulart, assumisse como presidente, e assim os Brizola sempre podiam privar do convívio próximo com o presidente da República e sua família. “Lembro que, no Rio, havia um carro oficial à disposição para que eu e os três filhos de Leonel e Neusa pudéssemos ser levados a determinados lugares”, frisa. “Aos sábados, o João Goulart sempre aparecia, para saborear um feijão com arroz, que ele adorava. A gente ficava hospedado em Copacabana, nas imediações do Copacabana Palace”.
Após a ida da família para o exílio, de tempos em tempos, em Porto Alegre, dona Irma ainda tinha notícias deles. E após o retorno de Brizola ao País, e na retomada da vida política, nas ocasiões em que vinha a Santa Cruz ou à região, ela costumava ter contato com ele. “Quando ele morreu, a Prefeitura de Santa Cruz colocou um carro à disposição, com motorista, para que eu pudesse ir a Porto Alegre me despedir dele, como de fato fiz”, salienta.
Já afastada do mundo do poder quando a família Brizola deixou o Brasil, em 1964, dona Irma rememora que por muito tempo ainda era muito visada. Mas ela procurou, já com mais de 30 anos, agilizar a formação em ótica e contabilidade para se integrar à empresa do ramo ótico e de joias dos irmãos, sediada no oitavo andar da Galeria Malcon, no centro histórico de Porto Alegre. Bem mais tarde, quando havia retornado a Rio Pardinho, dedicou-se a traduzir textos do alemão e a escrever sobre a próprioa história, em especial sobre a trajetória do pai, o professor Alfredo Lau.
Em mais de uma ocasião, o jornalista santa-cruzense José Augusto Borowsky fez a cobertura de visitas de Brizola a Santa Cruz. Para o jornal Gazeta do Sul e para a Rádio Gazeta, então AM 1.180 e hoje FM 107,9, ele entrevistou o político diversas vezes. Uma foi particularmente inesquecível.
Brizola não retornara há muito tempo do exílio quando, no início de 1981, agendava visita a Santa Cruz, para ver lideranças e intensificar as filiações ao recém-criado Partido Democrático Trabalhista (PDT), diante da impossibilidade de ele seguir com o antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), como pretendia. Quem intermediou a conversa foi o deputado estudual Júlio de Oliveira Vianna. A Rádio Gazeta ainda tinha sede na Rua Marechal Floriano, no segundo piso do antigo Bazar Rex (atual Taqi), e Vianna disse que ligaria para o apartamento de Brizola no Rio, para que Zé o entrevistasse. E assim foi feito. Mais de 40 anos se passaram, e a conversa está registrada em fita K7, que, a despeito de tantas tecnologias posteriores, segue intacta.
A trajetória política de Leonel Brizola (bem como a Campanha da Legalidade) já foi tema de inúmeros livros. Muitos deles de cunho biográfico ou autobiográfico, trazem contribuições para iluminar e elucidar a ação individual e as ideias dos personagens envolvidos. Especialmente sobre o período que se inicia com a fuga da família de Brizola para o exterior e a permanência no exílio por 15 anos, uma das mais instigantes leituras é Brizola, de Clóvis Brigagão e Trajano Ribeiro, que foram assessores do político. Lançado pela Paz & Terra em 2015, o livro, de 288 páginas, traz inúmeras fotos e contempla o período da família no Uruguai, depois nos EUA e em Lisboa, até a volta ao País, em setembro de 1979.
Do mesmo modo, de leitura formidável é El Caudillo – Leonel Brizola: um perfil biográfico, de F.C. Leite Filho, lançado pela editora Aquariana em 2008, em 544 páginas. Avaliação das contribuições de Brizola oferece o volume A razão indignada: Leonel Brizola em dois tempos (1961-1964 e 1979-2004), organizado por Americo Freire para a Civilização Brasileira, em 2016, com 350 páginas. E o filho dele João Brizola fixou as memórias familiares em Minha vida com meu pai, Leonel Brizola, pela editora Planeta, em 2016, com 288 páginas.
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