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Cemitérios guardam as informações de um povo

O dia 2 de novembro é o feriado dedicado à lembrança de quem partiu. Dia de saudade feito para recordar os entes queridos que já não vivem mais. Ao longo dos séculos, o culto aos mortos assumiu níveis diferentes de importância nas sociedades. Do tempo em que o cemitério era um dos espaços públicos mais importantes de uma cidade, herdou-se a imponência deles, instalados nas áreas urbana e rural dos municípios. Hoje não se sabe ao certo quantos estão sepultados em Santa Cruz do Sul, porém, é consenso entre as fontes ouvidas pela Gazeta do Sul que a denominação de “campo santo”, antigamente atribuída ao cemitério, continua atual.

A área da última morada guarda as informações de um povo. Representa as diferentes fases de uma comunidade, podendo ser comparada a um livro de história a céu aberto. No ritual da missa católica, a oração eucarística – considerada o ponto alto da celebração – ressalta a importância dos mortos, que é compartilhada entre as diferentes denominações cristãs. Quando o padre roga, após a comunhão, “lembrai-vos de todos que partiram desta vida”, ressalta que para a vida é importante reverenciar a morte e os mistérios que ela carrega.

Cuidar da morte é preservar a memória
Há 29 anos, a vida do zelador Eugenio Kappel é cuidar da morte. Sob a responsabilidade dele, repousam centenas de falecidos que ajudaram a escrever a história de Santa Cruz do Sul. Kappel vela o Cemitério da Igreja Imigrante, em Rio Pardinho, um dos mais antigos no município.

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Com um livro-caixa rasurado pelas marcas do tempo e um molho de chaves centenárias, o zelador abre as portas da última morada. Ele fala de angústia. “Eu não sei quem vai cuidar deste espaço quando eu não estiver mais aqui. Hoje, temos várias sepulturas que estão abandonadas pelos familiares dos mortos”, revelou.

Aos 78 anos, Kappel já sabe onde quer ser sepultado. O túmulo em que o bisavô foi enterrado, há 107 anos, deve ser o descanso eterno dele. “Eu estou reformando essa sepultura, pois estava muito desgastada. Assim como tantas lápides aqui, ela não tem mais as inscrições completas.” O zelador mostra, com orgulho, a pequena igreja evangélica. Parte do conjunto arquitetônico da localidade, o templo ajuda a explicar a importância do culto aos mortos. “Sempre realizamos culto na igreja, especialmente na época de Finados.”

Cuidar da necrópole foi uma escolha de vida. Kappel conta que, no período em que se dedica a zelar pelo sono eterno dos antepassados em Rio Pardinho, conhece gente e aprende a lidar com as situações mais dramáticas, como as despedidas dos vivos, ao pé das covas. Ele lida bem com a morte. “Isso é uma coisa muito natural, faz parte da nossa vida”, resumiu.

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Para o sociólogo Cesar Hamilton Brito Goes, professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), vários aspectos da cultura e da própria religião ligam os vivos aos cemitérios. Um deles diz respeito à ideia de continuidade e preservação das lembranças da vida. “Visitar os túmulos e cemitérios faz parte do que chamamos de culto à memória. Várias situações levam o indivíduo a essa devoção.”

Goes explica que o culto à memória póstuma também está relacionado a uma determinada fase da vida. Segundo o estudioso, dificilmente crianças e jovens envolvem-se com a visita aos túmulos. “A partir de um certo momento da vida, nos deparamos com essa necessidade, com a preocupação sobre a preservação da memória dos antepassados e da nossa própria lembrança. Trata-se de uma inquietação com a continuidade.”

Mateus Silva Skolaude, professor de História da Unisc, diz que o culto aos mortos na sociedade pós-moderna tornou-se algo desconhecido. De acordo com ele, no tempo dos avós das atuais gerações, a preocupação com a última morada – o túmulo – era uma realidade muito presente em vida. “Em uma sociedade que supervaloriza o prazer e o corpo, a morte acaba se tornando um tabu”, classificou.

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Skolaude revela que, para a história, o ponto de partida para a compreensão da vida está sempre próximo à marca da chegada do fim dela. Os túmulos trazem pequenas biografias das pessoas sepultadas neles, e por isso são essenciais para a compreensão da história de um determinado espaço e tempo. “Aquilo que para muitos representa o fim da vida, para nós, historiadores, é o começo de tudo.”

Valorização deve ser rotina
Conforme o pastor André Luiz Martin, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB), ao longo do tempo, a sociedade convencionou que a visita aos cemitérios ocorre oficialmente no feriado de 2 de novembro, Dia de Finados. No entanto, na avaliação dele, é necessário que os antepassados sejam sempre recordados. “É uma questão de valorizar o indivíduo, mesmo depois de falecido. O corpo é o santuário do Espírito Santo, ele é criação de Deus, e merece ter o seu devido valor”, salienta.
O pastor ressalta que a crença cristã na vida eterna depois da morte ajuda a reforçar a importância que se deve dar aos falecidos e seus túmulos. “Não podemos deixar que a lembrança das pessoas seja apagada. Nesse sentido, visitar, relembrar, levar flores aos túmulos são ações que reforçam a crença na ressurreição. Elas devem ser repetidas sempre.”

Homenagem aos que partiram
Segundo o bispo diocesano dom Aloísio Alberto Dilli, os vivos precisam preservar a trajetória dos mortos. “Visitar os cemitérios e orar próximo dos túmulos são sinais de respeito e gratidão aos antepassados. Depositar flores e cuidar desses túmulos são representações de nossa saudade, assim como da fé de que a morte é só uma passagem.”

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O religioso enfatiza que, independentemente da forma de sepultamento – tradicional ou após a cremação –, o espaço dedicado aos mortos no cemitério não pode desaparecer. “A Igreja Católica admite a cremação, desde que as cinzas da pessoa sejam guardadas. Não se espalha essa memória por aí. É preciso guardá-las no cemitério”, recomendou.

Na visão de dom Aloísio, a visita aos túmulos está dentro de um dos dogmas mais profundos da fé cristã. A ressurreição passa pelo enterro do corpo morto no cemitério. “Nesse sentido, visitar os túmulos é prestar uma homenagem a Jesus Cristo, que também foi sepultado para fazer a passagem da morte para a vida.”

José, o coveiro que comprou a própria sepultura
Preocupado com a última morada, o aposentado José Tessing já adquiriu uma gaveta no Cemitério Ecumênico da Paz Eterna, no Bairro Santo Antônio, em Santa Cruz. Depois que se aposentou como vigilante – jornada cumprida junto ao Cemitério Municipal, no Bairro Universitário –, ele decidiu investir na carreira de coveiro. “Eu sempre tive curiosidade em fazer a exumação dos corpos. Agora esse serviço é comigo.”

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No terceiro andar do cemitério, com vista para os bairros Santo Antônio, Arroio Grande e parte do Esmeralda, Tessing apresenta a gaveta 207, a sétima da terceira fila no pavimento. “A hora em que a morte chegar, será bem-vinda”, anuncia. Com a naturalidade de quem trata do tema diariamente, o coveiro conta que, além dele, o espaço adquirido pode acomodar a esposa e os filhos, caso seja do interesse deles. “É preciso preocupar-se com isso, pois na hora dá correria. Aqui está tudo garantido, pois no plano está incluída até a frente da sepultura. A única coisa é que alguém vai ter que pagar a mensalidade”, contou.

Tessing e a última morada: o espaço escolhido por ele tem uma boa vista da Zona Sul

No local, pagam-se R$ 144,00 por ano para manter tudo limpo, organizado, dispensando até a visita no Dia de Finados. “Quando é adquirida a gaveta, o cliente já contrata os serviços de limpeza, conservação e manutenção junto”, explicou Queli Achterberg, do departamento comercial do Paz Eterna. Paz e tranquilidade não estão só no nome do espaço. A tônica é a do menor esforço para o cliente e a contemplação aos mortos sepultados lá. “O familiar não se envolve com nada. Para aqueles que não têm o costume de frequentar cemitério, somos a opção.

Queli revela que basta manter o plano de anuidade em dia, que até mesmo a ornamentação dos túmulos merece atenção. “Quando sobra alguma flor, e ela ainda está boa, a gente coloca onde não tem”, tranquilizou. Atualmente, uma gaveta custa em torno de R$ 9,9 mil. O Paz Eterna tem capacidade de 4,5 mil gavetas. Destas, 1,8 mil programadas e 500 colocadas à venda. O Paz Eterna é um cemitério particular e não pertence a nenhuma funerária, assim como não é vinculado a nenhuma denominação religiosa.

Em memória
O Memorial Paz Eterna oferece uma minibiografia às famílias de seus sepultados. O banco de dados, que fica na internet e está disponível para consulta no cemitério, guarda um resumo da história dos falecidos. “Esse serviço não é obrigatório, é uma opção sem custo, oferecida à família. A intenção é preservar a lembrança dos mortos”, justificou Queli.

O conteúdo é organizado a partir das respostas a 47 questões, que contemplam personalidade, gostos, aparência, costumes e preferências do finado. “Nós não trabalhamos com a morte, mas com a continuidade da história das pessoas”, complementa Queli.

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