Num mundo em ebulição, a poesia é uma lufada de ar puro e de permanência. E é um sopro que não atiça as brasas da perdição, mas sustenta as asas da salvação. Nada poderia ser mais oportuno, para o início de um novo ano, do que uma obra como Moinhos moem o tempo, volume de poemas que a professora e escritora Cecilia Kemel lançou na reta final de 2024, pela Bestiário, em 96 páginas, a R$ 42,00.
Em sua nova incursão pela poesia, Cecilia lida com o tema (o elemento) que talvez represente o maior drama da condição humana: o tempo. Ele se situa à altura da dor que advém de todas as demais perdas, das quais a morte, por seu caráter irremediável, é a mais terrível. O conjunto de poemas é estruturado em quatro partes, que sinalizam para os ciclos naturais marcados pelas estações, metáforas também de diferentes fases da existência humana.
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Se os moinhos ativados pela criatividade de Cecilia moem o tempo, como ela indica, o que sobra é amor em estado puro. Do encanto ao desencanto, da comunhão à solidão, é de amor que trata: ele é o tempero da vida. E é em busca da habilidade e da mestria na aplicação da dose certa desse “sal” que o eu lírico avança (e, com ele, o leitor, maravilhado).
Em “Tempo de ser”, a primeira parte, o “eu” reina, na infância de um amor que nasce e se deslumbra com a intensidade da energia que é (a primavera!). Em “Tempo de seres”, o olhar desperta, toma consciência de si, perde algumas inocências, para ganhar outras, sugeridas pelo plural, que pode ser do substantivo ou do verbo (um mágico verão!).
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Em “Tempo de haveres”, a urgência e a presteza da colheita, separando o joio do trigo (no outono!). Por fim (por fim?), “Tempo de haveres”, no recolhimento e na contabilidade das perdas e dos ganhos (o inverno). Nunca é o fim. O espólio destes “haveres” é semente (ainda amor). E logo, logo a primavera pousará na paisagem.
Ventos da imaginação e da intuição
A obra da professora, poeta e escritora Cecilia Kemel é conhecida de longa data do público de Santa Cruz do Sul e da região. Natural de Cachoeira do Sul, filha de um casal de sírios e libaneses que acabou por se fixar naquela cidade, buscando reiniciar a vida longe de sua terra de origem, ela atualmente mora em Viamão. Por formação, sempre esteve ligada às letras, sendo mestre em Literaturas de Língua Portuguesa e Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Além de lecionar, foi compondo, ao longo dos anos, uma eclética bibliografia em diferentes gêneros, com ênfase em poesia, crônica, pesquisa e ensaio. Por conta dessa obra, integra a Academia de Belas Artes do Rio Grande do Sul e a Academia Cachoeirense de Letras, entre outras agremiações. Em um de seus livros, resgatou justamente as origens familiares.
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Sírios e libaneses: aspectos da identidade árabe no Sul do Brasil foi lançado em 2000, pela Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul (Edunisc). Como explicou à Gazeta do Sul, em entrevista publicada no Magazine na edição dos dias 4 e 5 de outubro de 2024, foi uma maneira de dimensionar o quanto representa o legado sírio-libanês.
O volume cristaliza, como referiu, “um olhar, ao mesmo tempo com distanciamento e profundidade, sobre a contribuição desse povo, do qual sou parte, à formação da nação sul-rio-grandense.” Se nesse ensaio lidava com temas étnicos e culturais, em seu novo livro de poesia o sentimento expresso é abrangente e universal, com construção afinada e refinada, como aponta o professor e ensaísta Antonio Hohlfeldt, no prefácio.
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Os “moinhos” de Cecilia, alimentados por sua imaginação e por sua intuição, beneficiam sonhos, sentimentos, impressões da vida e do mundo. Não processam grãos, e sim palavras e imagens (todas as que pode reunir: para ser, e sobre os seres). A brisa da imaginação e da intuição, na atividade criadora, permite que essa “Mulher de palavra” espalhe o pólen da poesia no solo que nutre e que amanha.
O mundo está dado, a vida está dada: cumpre semear (e talvez colher). E só haverá poesia porque há palavra, a base de tudo. “A palavra é meu solo / onde escolho o que planto / distraída / e colho o que germina”, anuncia, de pronto, quase um Gênesis. Planta (e colhe) amor. É a poesia que move os moinhos que redimem o tempo.
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