Caso Pronaf: anos de intensa angústia estão mais próximos do fim

A data de 12 de agosto de 2013 evoca lembranças duras para Cláudio José Müller. Morador do interior de Santa Cruz do Sul, onde planta tabaco e milho, ele enfrentava dias de agonia desde que passara a receber ligações e mensagens no celular quase diariamente com cobranças de dívidas sobre as quais não tinha conhecimento. “Era uma tortura”, relata a esposa Lisane. Angustiado a ponto de perder o sono, o agricultor, naquela manhã, viu Adriano, um dos dois filhos, à época com 20 anos, perder a cabeça diante da situação. “Eu dizia para ele: ‘não tenho esse dinheiro. Nós não pegamos. Se eu tivesse tanto dinheiro, eu nem precisava trabalhar’. E ele, muito agitado, falou: ‘estou cansado dessa vida de se matar trabalhando na roça e só ter dívida para pagar’”, recorda. Pouco depois de sair de motocicleta da propriedade em Cerro Alegre Alto em direção à cidade, Adriano sofreu um acidente que deixou-o à beira da morte – ao todo, foram 18 dias em coma.

Embora o filho tenha se recuperado depois de algum tempo, a família seguiu sob aflição permanente por vários anos. Cláudio e Lisane estão entre os agricultores que alegam ter sido lesados em empréstimos via Programa Nacional de Desenvolvimento da Agricultura Familiar (Pronaf), no caso levantado pela Polícia Federal na Operação Colono. Semelhante ao de centenas de outras famílias do Vale do Rio Pardo, o drama dos Müller começou alguns anos antes do acidente, quando, após vender uma carga de tabaco por R$ 8 mil às vésperas do Natal, Cláudio foi ao Banco do Brasil fazer o saque e descobriu que o dinheiro havia sido debitado e sua conta estava zerada. Surpreso, soube que o valor havia sido retido para pagar uma dívida do Pronaf.

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Até então, segundo Cláudio, o casal havia utilizado o programa uma única vez, para custeio da safra de milho, e o financiamento já havia sido todo quitado. A operação havia sido intermediada pela Associação de Pequenos Agricultores Camponeses (Aspac), braço jurídico do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). “Eles vieram aqui e fizeram uma reunião com uns 30 colonos para dizer que podíamos fazer empréstimos”, conta. O susto foi ainda maior quando, ao buscar explicações no banco, soube que havia mais de uma dezena de outros financiamentos no nome dele, que não havia solicitado, inclusive para custeio de atividades nas quais jamais havia atuado e para investimentos que jamais realizou, como a construção de um galpão.

Ele lembra, no entanto, de pessoas ligadas à Aspac terem pedido sua assinatura em diversas ocasiões. Quando cobrou a associação, conta ter recebido de um dirigente uma quantia de R$ 800,00 em espécie. “Ele me disse: ‘Isso é o que eu consigo hoje. Tá bom para ti assim?’. Eu disse que estava e aí busquei um advogado e fui na Polícia Federal”. Até que a situação se resolvesse na Justiça, a família passou por muito sofrimento. Com nome incluído em cadastro de inadimplentes, Cláudio teve rejeitado um pedido de empréstimo que viabilizaria a construção de uma baia para criação de porcos na propriedade. “Chorei muito por causa disso aí”, conta.

Ação ainda em fase inicial

Enquanto os processos de agricultores contra o Banco do Brasil avançam, a ação penal do Ministério Público Federal contra as 14 pessoas acusadas de serem responsáveis pela fraude ainda está em fase inicial. Após a 7ª Vara Federal receber a denúncia do MPF, todos os réus apresentaram defesa preliminar. Cabe, agora, ao juiz Guilherme Beltrame decidir se absolve sumariamente os réus, se volta atrás e rejeita a denúncia ou se mantém a denúncia. Nesse último caso, o próximo passo seria o início das audiências.

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“Parece que vai ser outra vida”, desabafa Cláudio Müller

Desde que vieram à tona as denúncias, diversos agricultores entraram com ações contra o Banco do Brasil alegando terem sido vítimas do esquema. Na maior parte dos processos, as irregularidades vêm sendo reconhecidas e, em muitos casos, os processos já transitaram em julgado (ou seja, não há mais possibilidade de recurso) e as indenizações começaram a ser pagas.

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Segundo os advogados Ricardo e Henrique Hermany, que representam em torno de 100 produtores, o apoio de peritos assistentes tem sido fundamental para o êxito das ações. As perícias apontam as movimentações fora do comum nas contas bancárias dos agricultores, o que indica que os recursos dos empréstimos eram depositados e retirados sem o conhecimento deles. “Há casos de saques na boca do caixa, saques por contrarrecibo e, inclusive, saques de valores altos feitos sem previsão, o que é difícil de conseguir. Vê-se nitidamente que as contas eram movimentadas e o banco não tem conseguido provar que essas movimentações aconteciam com a anuência dos agricultores”, observa Henrique. No caso de Cláudio e Lisiane Müller, que costumavam ir ao banco com pouca regularidade, constam dezenas de transações – em alguns casos, mais de uma por dia.

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Agora, porém, o casal deve receber a indenização a qualquer momento, uma vez que a ação já está em fase de cumprimento de sentença. A condenação prevê, além de dano moral, que o banco restitua os valores que foram indevidamente debitados da conta corrente, com juros e correção monetária. Devido ao grande número de movimentações, aos juros e à atualização pelo IGP-M (que no último ano acumulou alta de mais de 30%), o valor deve chegar próximo de R$ 1 milhão. Para Cláudio, porém, mais do que o dinheiro, a vitória representa o fim da angústia. “Me sinto mais aliviado. Parece que vai ser outra vida”, sorri.

Três anos depois

Em novembro de 2018, Cláudio José Müller foi tema de outra reportagem relacionada ao escândalo do Pronaf. À época, ele e outros agricultores que alegam terem sido lesados ainda aguardavam que o caso fosse denunciado à Justiça, o que só ocorreu no ano seguinte. Nessa sexta-feira, quase três anos depois, a Gazeta do Sul voltou à propriedade dele, em Cerro Alegre Alto.

Visivelmente mais leve diante da iminência do fim de um impasse que lhe rendeu intenso sofrimento, ele se permitiu até uma brincadeira sobre o caso. Ao apontar para um velho galpão construído pelo pai há 69 anos, ironizou: “Isso aí é do Pronaf que eu recebi”. Apesar disso, ainda emociona-se ao relembrar os últimos anos e conta que muitos produtores enfrentaram os mesmos problemas, mas não tiveram coragem de procurar a Justiça. “Muitos colonos têm medo de lutar contra o banco”, diz.

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Decisões abrem caminho para novas ações

As centenas de ações já ajuizadas podem representar uma fração do universo de agricultores prejudicados. Na denúncia apresentada em 2019, o Ministério Público Federal apontou que o esquema teria feito 5,7 mil vítimas na região. “Seguramente, não chega a 10% o número de agricultores que procurou a Justiça. Há casos de colonos que seguem recebendo ligações ou estão no Serasa”, analisa o advogado Henrique Hermany.

Decisões recentes do Tribunal de Justiça, porém, abrem caminho para novos processos nos próximos anos. A discussão começou quando alguns juízes de primeira instância, ao analisarem processos movidos após a denúncia do MPF, começaram a dar sentenças desfavoráveis aos agricultores por entenderem que eles não acionaram a Justiça dentro do prazo legal. Em um segundo momento, no entanto, o TJ passou a adotar o entendimento de que o prazo de prescrição deve ser de cinco anos contados a partir da denúncia, ou seja, 23 de outubro de 2019, e não de 2014, quando a existência da investigação veio à tona. “Em 2014, o agricultor ainda não tinha a noção exata do que tinha acontecido”, alega o advogado Ricardo Hermany.

Pelo menos duas decisões nessa linha transitaram em julgado no mês passado. Na prática, isso significa que os produtores lesados poderão buscar o ressarcimento dos danos até 2024. “É um divisor de águas muito importante. O Judiciário evitou a fraude perfeita. Não fosse isso, o banco ficaria impune”, analisa.

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A cronologia

  • Outubro de 2014
    Ainda em andamento junto à Polícia Federal de Santa Cruz, a Operação Colono vêm à tona.
  • Abril de 2015
    Em audiência pública na Comissão de Agricultura do Senado, o então presidente de Agronegócios do Banco do Brasil, Osmar Dias, confirma a existência das fraudes.
  • Agosto de 2015
    PF conclui a investigação e encaminha o caso para o Ministério Público Federal.
  • Novembro de 2017
    Reportagem da Gazeta do Sul mostra que, passados dois anos e ainda sem a manifestação do MPF, agricultores que acreditam terem sido vítimas da fraude começavam a ser cobrados pelo governo federal por dívidas que não reconhecem.
  • Novembro de 2018
    Demora do MPF em se manifestar é criticada por investigadores e advogados e gera angústia em vítimas.
  • Outubro de 2019
    O MPF apresenta denúncia contra 14 pessoas, incluindo o ex-vereador de Santa Cruz e ex-coordenador do MPA Wilson Luiz Rabuske e o ex-vereador de Sinimbu Maikel Raenke, que atuava junto ao MPA no município. Segundo a denúncia, o esquema teria feito 5.744 vítimas na região e os desvios chegariam a R$ 9,9 milhões.

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Heloísa Corrêa

Heloisa Corrêa nasceu em 9 de junho de 1993, em Candelária, no Rio Grande do Sul. Tem formação técnica em magistério e graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Trabalha em redações jornalísticas desde 2013, passando por cargos como estagiária, repórter e coordenadora de redação. Entre 2018 e 2019, teve experiência com Marketing de Conteúdo. Desde 2021, trabalha na Gazeta Grupo de Comunicações, com foco no Portal Gaz. Nessa unidade, desde fevereiro de 2023, atua como editora-executiva.

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Heloísa Corrêa

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