A quinta-feira no maior julgamento da história do Rio Grande do Sul foi marcada pelos depoimentos dos três réus restantes – Elissando Callegaro Spohr, o Kiko, já havia falado na quarta-feira, 8, à noite – e pelos debates entre Ministério Público (MP) e as defesas dos acusados. Essa fase final, onde cada representante jurídico apresenta suas teses para os jurados, foi marcada por intensa troca de farpas.
Pelo lado do MP, o promotor David Medina da Silva iniciou sua fala defendendo que o incêndio na Boate Kiss foi um homicídio doloso (quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo). Por duas horas e meia, a sustentação dele foi dividida com a promotora Lúcia Helena Callegari e o assistente de acusação, advogado Pedro Barcellos, que representa as vítimas no processo.
“Eles não queriam matar, nós nunca dissemos isso. Age com dolo quem quer e quem não quer”, afirmou o promotor David Medina da Silva. Em uma gafe, ele passou no telão – e foi transmitido pela reprodução em vídeo – uma foto bastante pesada, que estava reservada ao processo, mostrando dezenas de jovens mortos dentro de um dos banheiros da Kiss.
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“Não existe prisão pior do que a desses pais, dessas mães”, salientou Silva. Barcellos fez uma retrospectiva do que as testemunhas disseram em plenário durante os oito dias de oitivas. “Se não tivessem posto fogo na boate, ninguém ia morrer. E o Mauro e o Kiko eram os donos da boate e deixaram isso ocorrer.” A promotora Lúcia Helena disse que este foi o processo mais difícil da sua carreira, pela complexidade, carga emocional e tempo de julgamento.
Em muitos momentos, teceu palavras fortes contra os réus, sobretudo Kiko e Mauro. “São pessoas insensíveis, preocupadas com o patrimônio, com o pagamento de comanda”, afirmou a promotora. Ela encerrou dizendo que os jurados estavam representando o que queriam para Santa Maria, para o Brasil e para o mundo. “Estamos com a dor de 242 almas, mais os 600 feridos. Façam aquilo que os senhores deveriam fazer para os seus filhos.”
As defesas dos quatro réus tiveram 40 minutos cada para explicar aos jurados suas teses. Primeiro a falar, Jader Marques, advogado de Kiko, sustentou que dolo eventual é quando alguém não se importa com o resultado. Ele defendeu a desclassificação para outro crime (culposo, incêndio, incêndio com morte, etc). Marques trabalhou para derrubar o argumento da acusação de que o cliente dele agiu com desprezo e indiferença pela vida humana.
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“Elissandro não assumiu o risco de produzir o resultado porque não imaginava que fossem utilizar artefato pirotécnico para locais externos na boate naquela noite.” Sobre o uso de espumas, segundo o advogado, isso estava previsto em projeto entregue ao Ministério Público. “Tenho que condenar alguém que já sabia antes. Para haver dolo, é preciso haver consciência. E ele não tinha essa consciência da espuma”, afirmou. “Não determinem a condenação dessas pessoas por dolo eventual. O raciocínio de que eles sabiam o que estavam fazendo é ridículo, é absurdo”, pediu o advogado.
Bastante emocionada, a advogada Tatiana Borsa defendeu Marcelo de Jesus dos Santos. Em dado momento da explanação, ela mostrou a foto do companheiro da banda, o gaiteiro Danilo, uma das vítimas do incêndio, o que causou choro e comoção entre os réus Marcelo e Luciano Bonilha Leão. “Alguém tem que ser culpado por essa tragédia. Marcelo jamais imaginou tirar a vida de jovens.” Tatiana criticou o papel dos órgãos públicos, que considerou não terem agido nesse caso. “Eles existem para nos dar segurança. E não vir aqui para se eximir.”
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Por várias vezes, a defensora falou diretamente aos familiares presentes no plenário. “Os filhos de vocês estão aqui com a gente. A gente não pode querer justiça querendo a desgraça dos outros. A justiça não pode ser vingança.” Ao final, em um momento emocionante, Tatiana reproduziu um áudio com uma psicografia atribuída a Guilherme Pontes Gonçalves, de 19 anos, natural de Cachoeira do Sul, que faleceu na boate, extraída do livro espírita Nossa nova caminhada, de Lidiana Betega, publicado no ano de 2015.
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A terceira defesa a se pronunciar nessa quinta-feira foi a de Mauro Londero Hoffmann. “O Mauro não agia na sorte, agia na confiança”, afirmou Mário Cipriani, fazendo menção à fala da promotora de Justiça momentos antes, em plenário. Assim como as defesas anteriores, o advogado disse que há outros responsáveis pela tragédia, que não apenas os quatro réus. “A defesa pede que reconheçam a materialidade (houve mortes), mas, na condição de investidor, Mauro não teve ações ou omissões que tenham concorrido penalmente para a prática do resultado. Ele vai seguir respondendo no âmbito cível”, afirmou o outro advogado do réu, Bruno Seligman de Menezes.
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Menezes apresentou casos paradigmáticos de outras tragédias, como no Ninho do Urubu, Parque Hopi Hari, avião da Gol e República de Cromañón, na Argentina. Todos enquadrados como crime culposo. Segundo os defensores, Mauro não estava na festa naquela noite e não tinha condições de dizer o que aconteceu lá. E também não tinha conhecimento a respeito da colocação da espuma.
Por fim, o advogado Jean Severo, representante de Luciano Bonilha Leão, fez a mais eloquente manifestação de defesa. Ele teceu duras críticas ao Ministério Público e ao dono da loja Kaboom, onde o ex-produtor da banda comprou o artefato pirotécnico. “O que levou o Luciano para o banco dos réus foi o depoimento de um vagabundo da Kaboom, uma mentira desse crápula”, disse Severo, referindo-se a Daniel Rodrigues da Silva, que prestou depoimento na última sexta-feira.
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Performático, no final da sua manifestação, o advogado gesticulava de tal maneira que chegou a derrubar o microfone de lapela. “O que estamos vendo aqui é a maior injustiça que já vi na minha carreira jurídica”, complementou outro advogado da banca, Gustavo Nagelstein. Ao final da manifestação da defesa de Bonilha, o Ministério Público confirmou que irá para a réplica, e as defesas farão a tréplica.
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O julgamento retorna às 10 horas desta sexta-feira, 10, e a previsão, conforme o juiz Orlando Faccini Neto, é de que o Conselho de Sentença se reúna às 15h30 para votar os quesitos referentes aos acusados.
Os depoimentos dos três réus que faltavam – Elissandro Callegaro Spohr falou na quarta-feira – ocorreram nessa quinta-feira. O primeiro foi Luciano Bonilha Leão, produtor da banda. O réu, que chorou em vários momentos, confirmou que fazia a compra dos artefatos pirotécnicos usados pelo grupo. Foi ele quem acionou o artifício que, em contato com a espuma, provocou o incêndio na Kiss.
Em sua fala mais forte, disse: “Eu sei que o coração dos pais não entende a minha dor. Tenho a maior joia da minha vida, minha mãe. Ela está ali sentada com eles. Esses pais não têm mais o abraço, o carinho dos filhos. É legítimo deles lutar por justiça. Mas eu tenho a consciência de que não foi o meu ato que tirou a vida desses jovens. Se for para tirar a dor dos pais, tô pronto, me condenem”.
Mauro Londero Hoffmann, sócio da Kiss, foi o seguinte a depor. O empresário, que jamais deu uma entrevista sobre o caso, informou que seu papel na Kiss foi apenas de investidor; Kiko era o administrador e quem tomava todas as decisões. Segundo ele, Elissandro pediu R$ 200 mil para colocar as contas em dia. O investimento rendia em torno de R$ 15 mil mensais a ele.
Sobre a madrugada do incêndio, Mauro disse que foi uma cena de horror. “As pessoas ainda saíam vivas de lá. Pouco tempo depois, a gente tomou a proporção (da gravidade dos fatos)”. Ele lembra que ficou no local até as 5 horas de domingo e se apresentou à Polícia Civil posteriormente.
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Mauro teve os bens bloqueados e encerrou os negócios. “Tive que fugir com a minha família, pois, nas redes sociais, diziam que iam queimar a nossa casa”. De acordo com o empresário, até funcionários seus foram ameaçados. “Sempre tive vontade de ajudar (as famílias). Aqui só temos perdedores. Ninguém ganhou nada. Eu quero pedir perdão. Ninguém queria isso. Sou forte, vou recomeçar a minha vida.”
Marcelo de Jesus dos Santos, o vocalista da Banda Gurizada Fandangueira, afirmou que todas as vezes em que o grupo musical tocou na Kiss, utilizou pirotecnia. “Dia 27 nunca saiu de mim. Eu acordo e durmo pensando no dia 27. Não tô bem, eu nunca estive bem”, afirmou o músico. Segundo ele, Luciano alcançou o artefato para Marcelo que, de frente para o público, começou a balançar a mão para o alto, de um lado e do outro.
Luciano acionou o fogo de artifício. De repente, uma pessoa alertou Marcelo de que estava pegando fogo. Um rapaz subiu no palco e entregou um extintor de incêndio. “Larguei o microfone, peguei o extintor na mão. Eu gritei ‘fogo, fogo, sai’. Quando me deram o extintor, eu achei que ia apagar. Só tive uma chance, mas o extintor não funcionou.”
Ele contou ter pensado que ia morrer. “Quem me tirou foi o meu irmão. Se ele não tivesse me visto voltando, eu ia voltar para o fogo”, afirmou, chorando. “Quando acordei, era uma cena de guerra. Pessoas chorando e eu no meio das pessoas mortas.”
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