A revisão dos costumes na sociedade vem reduzindo a tolerância a manifestações culturais que reproduzam valores antigos. Uma canção com teor machista, por exemplo, dificilmente escaparia de fortes contestações se lançada em pleno 2022. Mas e se a letra foi escrita há mais de 50 anos, quando a compreensão social dominante acerca do papel da mulher era outro? Ainda que tenha se tornado um clássico e possua inegáveis méritos técnicos, uma música assim deve deixar de ser interpretada nos dias de hoje?
A polêmica foi aberta após Chico Buarque revelar que deixou de cantar a conhecidíssima Com Açúcar, com Afeto. Criada em 1967 a pedido de Nara Leão, a música, que descreve uma mulher submissa a um marido que passa as noites em bares enquanto ela o aguarda solitária em casa, é criticada por movimentos feministas. “Elas (as feministas) têm razão. Eu não vou cantar Com açúcar, com afeto mais e, se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente”, disse Chico.
Essa não é a primeira adesão a uma tendência de revisionismo crítico de obras de arte. Paulinho da Viola também já riscou canções próprias de seu repertório por considerar inadmissível a forma como as mulheres são retratadas nas letras. Vários blocos de Carnaval têm abandonado nos últimos anos sambas e marchinhas de cunho machista ou homofóbico, como Ai, que Saudades da Amélia, Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão. Em outros campos, autores como Monteiro Lobato vêm recebendo novas leituras que acusam a evidente presença de componentes racistas em seus textos.
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Na prática, a discussão está longe de um consenso. Após a declaração de Chico, a cantora Fernanda Takai anunciou que manterá Com Açúcar, com Afeto, gravada por ela em 2007, no repertório de seu novo show. Enquanto grupos identitários defendem que esse movimento é fundamental para que situações de desigualdade deixem de ser naturalizadas, outros alertam que obras não podem ser retiradas de seus contextos históricos e há risco de o chamado “cancelamento” se converter em censura à liberdade de expressão.
Para a doutora em Ciência Política e ativista feminista Denise Mantovani, o movimento de revisão de manifestações culturais antigas é saudável na medida em que representa um olhar crítico para realidades de desigualdade que persistem e precisam ser combatidas. O que se busca, na sua avaliação, não é um apagamento do passado, mas sim uma tentativa de aprender com ele. No caso de Com açúcar, com afeto, Denise acredita que a letra, de alguma maneira, naturaliza a vida sofrida de uma mulher. “Esse processo de discussão social fez com que ele (Chico Buarque) percebesse, ao longo desse tempo, que a letra precisava de uma crítica”, observou.
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Outro caso citado pela especialista é da canção Faixa Amarela, de Zeca Pagodinho, que retrata uma situação de violência doméstica: “Se ela vacilar/Vou dar um castigo nela/Vou lhe dar uma banda de frente/Quebrar cinco dentes/E quatro costelas”. Por conta desse teor, a letra vem sendo alterada em interpretações mais recentes. “Fazer de conta que isso não é nada, para nós, mulheres, é terrível, porque é a naturalização de uma realidade para a qual devemos olhar criticamente e dizer: ‘Isso precisa mudar’. Precisamos incorporar essa leitura crítica.”
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Para a cantora gaúcha Anaadi, vencedora do Grammy Latino, o caso de Chico Buarque não representa um “cancelamento”, e sim uma autocrítica do autor. “Foi ele quem decidiu, como um reconhecimento da realidade feminina, priorizar a mensagem de respeito às mulheres nos seus concertos atuais. Aí me parece haver um desejo, por parte dele, de reproduzir no mundo mensagens nas quais acredita”, observou.
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Na sua visão, ao criticar os próprios trabalhos, os artistas contribuem para o questionamento de determinadas realidades. “O exercício crítico que se dá a partir de todas as obras, inclusive aquelas que refletem valores ‘já não aceitos’, sempre deve existir, mas com o objetivo de evocar essas perguntas, de dar voz a demandas sociais, de refletir sobre questões importantes e de problematizar certos modos de vida nos tempos, a fim de que possamos agir melhor em sociedade.”
Iara Bonfante, que milita no movimento feminista em Santa Cruz, também entende que a arte deve ser utilizada como um instrumento de reflexão. Por conta disso, acredita que músicas antigas, ainda que reproduzam valores machistas, não devem deixar de ser interpretadas. “São músicas que temos que ouvir, sim, e refletir sobre isso. Isso que aparece nas músicas ainda acontece no dia a dia de muitas mulheres.”
De acordo com o historiador e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisc Mozart Linhares da Silva, é inegável que a arte sempre foi atravessada por narrativas preconceituosas que, principalmente a partir dos anos 2000, passaram a ser percebidas como ofensivas – no que os movimentos identitários, como o feminismo, tiveram um papel decisivo. Isso, na sua avaliação, tornaria inadmissível que uma letra como a de Com Açúcar, com Afeto fosse produzida hoje.
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Ele alega, no entanto, que esse revisionismo não pode representar uma censura ao arquivo cultural do País. “Uma coisa é a produção artística atual, outra é o arquivo da arte nacional. Vivemos um contexto de patrulhamento, apontamento, julgamento e punição que produz pânico e, no limite, a submissão da criação artística a determinados cânones. A arte não pode ser domesticada, ou deixa de ser arte”, analisou.
Na mesma linha, a escritora Leticia Wierzchowski alega que não se pode ignorar o contexto de criação e tampouco o contexto sobre o qual as obras falam. Ela usa como exemplo o romance A casa das sete mulheres, de sua autoria, que se passa durante a Revolução Farroupilha e já sofreu críticas por retratar pessoas negras somente em uma realidade de escravidão. “Muitos leitores vêm me dizer que o livro é preconceituoso. Mas a história se insere nesse contexto econômico e político. A arte existe para contar o que aconteceu, para que a gente não se esqueça do que aconteceu e para transformar”, opinou. No caso de Chico Buarque, Leticia entende que a canção foi composta “em outro tempo” e “com as melhores intenções”.
Professor em Realização Audiovisual da Unisinos e doutor em Ciências da Comunicação e Informação, Josmar de Oliveira Reyes acrescenta mais um ponto à discussão: ainda hoje existem muitas manifestações culturais populares com conteúdo preconceituoso e pejorativo em relação às mulheres. “A sociedade há anos objetifica o corpo feminino. É uma hipocrisia o Chico Buarque virar bode expiatório”, criticou.
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Reyes também observa que, além de serem datadas, muitas obras não necessariamente ratificam uma visão de mundo mas, em diversos casos, podem ser lidas como denúncias de uma realidade. “No meu ponto de vista, o Chico não enaltece esse tipo de comportamento, mas denuncia e dá visibilidade a histórias trágicas femininas. É importante termos esse repertório artístico para que a gente possa repensar valores”, disse.
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