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Caminhada ecumênica une fiéis em Santa Cruz do Sul

Meio século depois de Martinho Lutero publicar na porta da Igreja de Wittenberg (Alemanha) as 95 teses contestando o poder e as ações da Igreja Católica na época, dando assim início à Reforma Luterana, uma caminhada ecumênica marcará o ponto alto da comemoração do jubileu em Santa Cruz do Sul. Luteranos e católicos começam a confraternização às 19h30, na frente da Catedral São João Batista, e seguem depois para uma parada na Praça da Bandeira, com o encerramento na Igreja da Comunidade Evangélica Centro, na Rua Venâncio Aires. A celebração terá a participação de corais e da banda do 7º Batalhão de Infantaria Blindado (7º BIB) e os participantes levarão a Cruz, Bíblia, Círio, bandeirolas e velas.

Herdeiras diretas do movimento de Lutero, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e a Igreja Luterana do Brasil (IELB) desenvolveram nos últimos meses diversas celebrações e confraternizações para marcar a contagem regressiva para os 500 anos da Reforma. O objetivo foi resgatar o legado deixado por Lutero para cristãos e não cristãos, pois as suas pregações foram muito além da fronteira da religião. As suas palavras e atitudes influenciaram a política, economia, educação, cultura e ética.

O pastor da Comunidade Evangélica de Confissão Luterana do Centro, Márcio Trentini, explica que o objetivo da caminhada no início da noite de hoje é “testemunhar não apenas a fé do povo santa-cruzense, como também a comunhão entre as igrejas luteranas e católica, presentes desde o princípio da história do município”. As atividades na frente da Catedral começam com apresentação de coral e execução do Hino Nacional pela banda do 7º BIB e palavra do pastor sinodal Bruno Bublitz e do bispo Dom Aloísio Dilli.

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Os participantes sairão depois em direção à Praça da Bandeira, onde haverá apresentação do Coral da Afubra, pronunciamentos de autoridades com enfoque social e político, prece pela paz e acendimento das velas. Na sequência, a caminhada segue até a Igreja Evangélica do Centro, na Rua Venâncio Aires, onde a banda do Exército fará nova apresentação. Haverá ainda a fala de um pastor, entrega de placas comemorativas às comunidades, troca de Bíblias e oração do Pai Nosso. A celebração seguirá com corais, bênção e envio, execução do hino Deus é Castelo Forte, composto por Martinho Lutero, com a banda do 7º BIB e o abraço da paz.

Aspectos do legado

Educação – Entre as grandes mudanças que as ideias de Martinho Lutero provocaram estão aspectos relacionados à área da educação. Há 500 anos era muito comum que uma criança morresse vítima de uma peste. Em seus escritos para pais, Lutero disse que  “lugar de criança é na escola e os pais que não mandarem os filhos para a escola estão condenados ao inferno”. Esse pensamento se refletiu no Brasil, pois os imigrantes vindos da Alemanha construíram escolas assim que se fixaram em suas novas terras. Lutero também defendeu a universalização da educação, inclusive para as meninas, ao invés do acesso restrito apenas para crianças e jovens com vocação religiosa ou de camadas sociais mais ricas, como acontecia no século 16. Pregava, por exemplo, que cada vez que se gastava uma moeda com armamento se deveria aplicar 100 delas na educação.

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Economia – Na área econômica, o movimento da Reforma não só denunciou as práticas injustas e exploradoras dos grupos do setor e comerciantes. As ideias de Lutero exerceram grande influência na busca por modelos alternativos de organizações de uma sociedade igualitária voltada para o atendimento das necessidades básicas do povo. Conforme o pastor Valdeci Foester, entre os modelos práticos, uma alternativa concreta e que funcionou por séculos foi a criação de caixas comunitárias (associações). Elas tinham por objetivo dar o apoio às atividades da comunidade e da escola, o sustento de pessoas necessitadas e a manutenção e regulamentação de estoques de cereais. Quando houve a migração de famílias evangélico-luteranas para o Brasil no século 19, essas caixas (Gotteskasten) foram responsáveis pelo envio e manutenção de pastores e professores no Brasil.

Novo pensamento religioso – As ações de Lutero ajudaram a dar origem ao movimento religioso descrito como  “a revolução mais significativa na História da humanidade”. Ao criticar abertamente a Igreja Católica, ele ajudou a mudar a situação religiosa geral da Europa e a terminar com os tempos medievais naquele continente. Assim, o monge que queria reformar a Igreja Católica criou um novo pensamento religioso, o luteranismo. Uma das grandes paixões de Lutero, a música ajudou a disseminar suas ideias para as pessoas. E ele criou novo jeito musical: o canto coral. 

Uso intenso da imprensa – A invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg ocorreu no século 15 e resultou em uma grande revolução que transformou a cultura e a sociedade europeia durante a Modernidade. O sucesso começou sobretudo com sua impressão de cópias da Bíblia, ainda na década de 1440. Mas a utilização da imprensa tornou-se realmente intensa no século seguinte, com a Reforma Protestante empreendida por Martinho Lutero. Os panfletos luteranos, que começaram a ser veiculados em 1517, passaram a ser rodados nas máquinas de imprensa (réplicas do modelo de Gutenberg) dos vários principados alemães simpáticos à causa reformista. Essa disseminação começou uma revolução sem precedentes na prática da leitura. Lutero também lançou a base para uma padronização da escrita da língua alemã. Sua tradução da Bíblia do latim continua sendo em muito a mais popular na língua alemã.

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Ética e trabalho – Lutero também mudou o conceito de que a ética está no céu, pregando que o seu alvo é a terra, entre os homens. Em seus escritos, fala da ética do trabalho (Berufsethik), sustentando que todo o trabalho é digno e tem igual valor. Não somente o trabalho espiritual agrada a Deus, mas todos são importantes. Isso significa também o trabalho cotidiano e normal das mulheres. As ideias de Lutero mudaram a mentabilidade sobre o valor do trabalho, ao defender que qualquer indivíduo poderia servir a Deus na profissão que escolhesse. 

Valorização da mulher – Em suas teses, Lutero encorajou as mulheres a assumirem a sua própria forma de viver e assim muitas deixaram de ficar enclausuradas no convento. E ao Lutero defender o fim do celibato, a mulher passou a ser valorizada. Conforme a pastora Claudete Beise Ulrich, Martinho Lutero difundiu o princípio do sola scriptura, que sustenta que a autoridade da Bíblia está acima de todas as tradições da igreja e dos dogmas. Tal hermenêutica proposta pela Reforma, segundo a qual a leitura da Bíblia deve ocorrer a partir de Cristo, é fundamental para a atuação das mulheres. Outro exemplo é a propagação da doutrina do sacerdócio geral de todas as pessoas batizadas, exposta no escrito À Nobreza Cristã da Nação Alemã (agosto de 1520), segundo a qual todas as pessoas se tornam iguais a partir do Batismo.

PROGRAMAÇÃO

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Santa Cruz: caminhada ecumênica a partir das 19h30, partindo da Catedral São João Batista, com passagem pela Praça da Bandeira e encerramento na Igreja Evangélica do Centro.

Candelária/Igreja Sinodal: cultos em Costa do Rio, às 9 horas; em Quilombo, às 14h30; e na cidade, às 20 horas. No município é feriado hoje.

Candelária/Celc: a Comunidade Evangélica Luterana Cristo sedia o culto distrital, a partir das 20 horas, na rua coberta da cidade. A celebração reunirá as comunidades do município, de Cerro Branco e Novo Cabrais e de outras áreas próximas.

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Sinimbu: a Paróquia Evangélica de Sinimbu terá programação especial com início às 19h30, na Praça do Monumento ao Imigrante, reunindo integrantes de todas as comunidades que compõem a paróquia, bem como luteranos, católicos e demais interessados. Depois, os participantes farão caminhada ecumênica até a Igreja Evangélica, onde começa a celebração, com o descerramento da Rosa de Lutero e a participação de um grupo instrumental. Logo após, as atividades seguem no salão da Comunidade Evangélica com manifestações de autoridades civis e religiosas, apresentação de corais e o show de Mauro Harff, além de mesa partilhada, formada com alimentos que cada comunidade levará.

Venâncio Aires: haverá culto na Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Centro às 19 horas, com plantio de uma macieira em comemoração aos 500 anos da Reforma e inauguração de um monumento na Praça Evangélica.

A redescoberta da verdadeira mensagem da fé

Natural de Agudo, o presidente da IECLB, Nestor Friedrich, defende que Lutero redescobriu a mensagem verdadeira da Escritura. O pastor participou durante o ano de número expressivo de comemorações relacionadas ao jubileu, como o lançamento do selo comemorativo pelos Correios, homenagens na Assembleia Legislativa e em câmaras de vereadores, celebrações e encontros ecumênicos e de comunidades que celebram centenário de fundação, por exemplo.

Friedrich explica que os sínodos e as comunidades em geral cuidaram para que as comemorações fossem coerentes com os princípios da Igreja. Graduado e com doutorado em Teologia, Friedrich atuou como pastor nas paróquias de Canguçu/Piratini, Dr. Maurício Cardoso e Nova Hartz. Entre 2003 e 2010 foi secretário-geral da IECLB até assumir a presidência em janeiro de 2011. 


Nestor Friedrich é o pastor presidente da IECLB. Foto: Divulgação.

ENTREVISTA

Nestor Friedrich
Pastor presidente da IECLB

Gazeta do Sul – Quais, em seu entender, são as marcas mais salientes que o luteranismo deixa nos dias atuais no contexto da religiosidade em âmbito de Brasil?
Nestor Friedrich – Martinho Lutero e o seu empenho que resultou na Reforma precisam ser compreendidos a partir da sua Teologia. Enquanto a Igreja da época difundia a imagem de Deus como juiz severo, o que favorecia o comércio de indulgências (a venda do perdão), Lutero redescobriu a mensagem verdadeira da Escritura: o sacrifício de Cristo trouxe (e traz a cada novo dia) o presente (a graça) chamado perdão. O que Deus requer de nós (e este é seu amoroso convite) é que peçamos perdão, nos arrependamos e, em resposta, vivamos como pessoas generosas, solidárias, promotoras da paz e da justiça. A partir dessa redescoberta, Lutero sentiu-se livre, livre de medo e culpa diante de Deus e pronto para mostrar as consequências dessa fé para a vida em sociedade. No caso do Brasil, para falar sobre o contexto no qual a IECLB está inserida, essa característica da Teologia da Reforma ou Teologia Luterana é um elemento que se distingue. Obviamente, não é tarefa fácil proclamar a graça de Deus em meio a uma religiosidade crescente que substitui a graça de Deus por novas formas de indulgência.

Gazeta do Sul – Como a igreja luterana busca conviver ou como avalia o crescente movimento de outras igrejas chamadas evangélicas?
Friedrich – Por um lado, trata-se de saber conviver. Vivemos num Estado laico. Cada pessoa tem o direito de ter a sua crença e nós respeitamos esse direito.

Gazeta do Sul – O que essa expansão sugere ou o que sinaliza em relação à fé e às crenças no mundo contemporâneo?
Friedrich – Vivemos hoje em meio a um “mercado religioso”. Esta expressão não precisa apontar, necessariamente, algo negativo. Infelizmente, porém, esse “mercado” aponta que há práticas religiosas questionáveis, se confrontadas com a teologia luterana. Diante disso, o desafio não consiste em criticarmos, mas de afirmarmos, com clareza e voz convidativa, o que nós cremos e professamos. 

Gazeta do Sul – Como tem sido a reflexão, dentro da igreja luterana, no que concerne a dogmas ou à busca de uma linguagem sempre atualizada com seu tempo, diante dos avanços havidos na área das comunicações e das novas ferramentas de interação com o público?
Friedrich – Este é um desafio para cada novo dia. A palavra dogma é um tanto complexa, mas se tomarmos o cerne da teologia luterana como exemplo de dogma, então é cabível apontar que é desafio cotidiano para a Igreja traduzir esse dogma para a linguagem de hoje, a partir dos meios hoje disponíveis, com a difícil tarefa de alcançar o público que é bombardeado constantemente com convites e mensagens de todo teor.

Gazeta do Sul – E a relação da igreja luterana com o espírito científico ou com as descobertas, inclusive as que, por vezes, levam a duvidar de afirmações bíblicas. Como os luteranos, nos dias atuais, buscam se relacionar e se posicionar com esses outros discursos?
Friedrich – A IECLB tem posição sobre isto. Somos Igreja com mensagem e confissão fundamentadas na Escritura. É com base nisso que a IECLB, ao longo da sua história, tem tomado posição diante dos temas mais diversos e complexos. Isto a Igreja faz em constante diálogo com a ciência. Se Deus criou o ser humano, mulher e homem os criou, então é evidente que o ser humano está dotado de capacidade tremenda para pesquisar e descobrir. Que seria de nós se assim não fosse! Morreríamos diante do mais banal resfriado! Entretanto, é óbvio que a IECLB tem consciência que a ciência ou em nome da ciência há o alto risco de serem ultrapassados limites que, ao invés de promover e defender a vida, a menosprezam, ameaçam e até ferem. Resumindo, somos Igreja que defende o diálogo entre ciência e teologia.

Gazeta do Sul – O que significa a figura humana de Lutero para os luteranos nos dias atuais? Como ele é visto, entendido e compreendido?
Friedrich – Às vezes, há alguns exageros. Isso ocorre quando se vê Lutero como alguém quase vindo de outro mundo. Temos que receber e compreender a figura de Lutero como ele mesmo se definiu: um ser humano, cheio de falhas e fraquezas, que se colocou a serviço de Deus depois que superou os próprios medos que o afligiam. Sem dúvida, Lutero é exemplo de pessoa que, ao compreender o Evangelho, não o transformou em consumo intimista e reservado, mas passou a atuar e dar testemunho, pois o Evangelho é boa notícia para este mundo. Foi por isso que Lutero se “meteu” e se empenhou em assunto do cotidiano do seu povo: a importância da educação, o dever de quem exerce a função política, a defesa das pessoas mais frágeis, a sua crítica contundente a todas as formas de usura, a motivação para a vida em comunidade, o reconhecimento de cada profissão como meio digno de servir e ser reconhecido.

Gazeta do Sul – Como o luteranismo olha para o futuro? Com apreensão ou com confiança?
Friedrich – Não podemos afrouxar o nosso empenho diante das dificuldades e dos desafios de hoje, mas olhamos para o futuro confiantes. Com toda a humildade e sem falsa modéstia, entendemos que a Igreja Evangélica de Confissão Lutera no Brasil tem o seu lugar insubstituível neste país. Temos uma tarefa na Missão de Deus neste país. Disso não podemos abrir mão e por isso nos empenhamos. 

(Com colaboração de Romar Beling)

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