As semanas que antecederam a publicação do caderno especial pelo aniversário dos 79 anos da Gazeta do Sul foram de bastante trabalho. Muitas pessoas para conseguir contatar, muitas entrevistas para tentar encaixar de forma simultânea, muitas saídas a campo, além de toda a diversidade de textos para produzir, conferir e editar nas páginas. O resultado foi visto na edição impressa do último dia 26 de janeiro e os bastidores desses encontros com os entrevistados mais uma vez deixaram ricas reflexões.
A primeira delas viria de uma pauta que, nos instantes iniciais de contato com a fonte, mudou completamente o rumo e me despertou ainda mais interesse. A entrevista aconteceria em uma casa centenária, construída no estilo enxaimel, cujo proprietário havia sido um dos primeiros assinantes do jornal. Quando soube que o imóvel se mantinha preservado por sua neta, a terceira geração da família a contar com a assinatura da Gazeta do Sul desde 1945, meu fascínio pela história só aumentou. Tão logo combinei a entrevista, para dali a dois dias, anotei o horário na planilha para reservar o carro e garantir a agenda com o fotógrafo.
Àquela altura, minha imaginação já criava mil e uma cenas e ambientes. Afinal, era fácil deduzir que o lugar guardava muitas, muitas histórias. A Rafaelly Machado, fotógrafa multimídia da Gazeta (e minha amiga), que me acompanha na maioria das pautas e saídas a campo, já me conhece só pelo meu jeito de olhar e me expressar. Ela sabe direitinho quando algo me comove ou me desperta curiosidade. Mas nessa pauta eu me vi tão absorta que não deixei transparecer o que realmente mexeu comigo: uma caixa repleta de fotografias antigas. Todas reveladas em preto e branco.
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Quando olhei para aquele amontoado de imagens (e também de rostos e lugares e momentos eternizados) e comecei a pegar uma a uma, eu voltei no tempo e me vi criança, na casa dos meus avós maternos, sentada em uma cama do quarto de visitas, repetindo a mesma cena. Minha avó também tinha uma caixa de fotografias e seguidamente me mostrava, apontando as pessoas que, obviamente, eram desconhecidas a mim.
De todas aquelas fotos amareladas da minha avó, uma cravou lugar na minha memória em função da narrativa feita por ela. Era a imagem de um soldado magricelo, de baixa estatura e olhar profundamente frio, que usava farda, capacete e empunhava uma arma contra o corpo. Tratava-se do meu tataravô que, conforme ela, havia sido convocado para a Segunda Guerra Mundial e que, depois de algum tempo em meio àquele conflito, havia retornado para casa. Embora ele tivesse sobrevivido, voltara totalmente transformado e amedrontado. Dizia minha avó, enquanto meus olhos se mantinham fixos naquele rosto, que ele deixara de ser o homem que havia embarcado para a guerra, pois retornara ainda mais calado e passava a maior parte do tempo trancado, em locais escuros, sem contato com ninguém.
Sem maturidade para entender naquela época, do alto dos meus nove ou dez anos, o porquê do comportamento daquele homem no pós-guerra, no meu íntimo eu queria saber mais a respeito dele e da vida que levara. E hoje sequer posso supor o tanto de história que aquele homem guardava e tudo o que ele havia suportado diante dos próprios olhos. As fotografias sempre me despertaram isso. Os lugares antigos, abandonados ou preservados, idem. O tempo transcorrido sempre me soou como algo a ser desbravado, descoberto e contado. Não consigo encontrar outra definição que melhor traduza o que sinto. Curiosidade, alguns dirão. Mas vai além.
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A passagem incrédula do tempo e as transformações por ele causadas, me fazem questionar sobre o valor que damos à vida e ao que verdadeiramente tem sentido. Ao olhar para as fotos dos casais imigrantes, com seus filhos, como as que estavam na caixa guardada na casa em estilo enxaimel que visitei durante a entrevista do caderno, por exemplo, me pergunto o que terá sido daquelas crianças e daqueles pais, em tempos de maior escassez, na forma como teriam conduzido suas vidas, na força que precisaram lançar para superarem suas dificuldades e cumprirem seus propósitos. E, depois de tudo feito, o que teria sobrado das memórias por eles deixadas nas outras pessoas. A vida por eles trilhada teve alguns de seus instantes eternizados naqueles momentos em que foram fotografados.
E assim é com tudo e com todos, em qualquer que seja o tempo ou a circunstância. É por isso que o que verdadeiramente importa é o “aqui e o agora”. É nesse exato momento, que não terá repetição, que podemos começar a abrir novos caminhos, a escrever outras histórias, a repensar nossas atitudes e a questionar se estamos empenhados em fazer com que nossas vidas sirvam de instrumento para influenciar positivamente as outras pessoas.
Que memórias estamos construindo hoje para serem deixadas nas nossas fotografias que, daqui a algumas décadas, poucas pessoas ainda irão lembrar de contar para alguém? Teremos tido a coragem de abraçar nossos sonhos e aquilo que faz o nosso coração vibrar? Teremos conseguido estreitar laços com pessoas e lugares que nos tornem mais humanos, mais amorosos, mais empáticos? Que nossa passagem por aqui não seja em vão e que possamos deixar rastros de saudade e contribuir, sobremaneira, para que o mundo tenha ficado um pouco melhor depois da nossa chegada.
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