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PELO MUNDO

Boston – Parte 2: o pioneiro da luta antirracismo nos EUA

O primeiro livro publicado por um africano nos EUA foi o de Phillis Wheatley (1773)

Emiliano Felício Benício, mais conhecido nos Estados Unidos como Emiliano Mundrucu, nasceu em Pernambuco, em 1791. Filho de um homem de posses com uma mulher escravizada, teve acesso à educação e, como soldado, destacou-se no comando do Batalhão de Pardos durante a Confederação do Equador. Por seu papel no conflito, chegou a ser nomeado comandante do importante Forte do Brum, no Recife, posto que não pôde assumir por resistência da racista elite pernambucana da época. Por ser antimonarquista, foi forçado a fugir do Brasil, fixando-se em Boston depois de passagens pela Gran Colômbia (atuais Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá) e pelo Haiti.

Em um dia frio e chuvoso de novembro de 1832, Emiliano, sua esposa Harriet e a filha Emiliana, de apenas um ano, embarcaram no vapor Telegraph, que partia da costa de Massachusetts para a ilha vizinha de Nantucket. Durante a travessia, Harriet passou mal e, ao procurar abrigo na cabine do navio reservada para as mulheres, foi barrada sob a alegação de que ali só eram permitidas pessoas brancas. Mundrucu suplicou ao capitão do navio, explicando que havia pago a tarifa mais cara e, por isso, a esposa e a filha deveriam ter direito ao local aquecido e mais confortável. O comandante, Edward Barker, impediu o acesso e afirmou: “Sua esposa não é uma senhora. Ela é uma negra”.

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Estátua em homenagem à Emancipação dos Escravizados de 1863

A atitude desafiadora de Mundrucu já seria considerada pioneira nos Estados Unidos, mas ele decidiu ir bem além e, em 1833, levou o capitão Barker para a corte de Boston, em uma ação de quebra de contrato que enfatizava a desumanidade da segregação racial. O litígio é considerado o primeiro processo nos Estados Unidos contra o racismo. O juiz deu ganho de causa ao brasileiro e determinou indenização, mas a decisão foi revogada no ano seguinte pela Suprema Corte estadual. O mais importante, contudo, foi ter estabelecido o precedente gerado pela coragem de Emiliano, inspirando outros negros a buscar seus direitos pela via judicial. O julgamento foi manchete em todos os jornais dos Estados Unidos e em muitos periódicos europeus.

Nos anos seguintes, Emiliano se tornou um eminente ativista no combate à segregação em escolas, meios de transporte e espaços públicos e, em janeiro de 1863, celebrou ao lado do mais famoso herói abolicionista, o ex-escravizado Frederick Douglass, quando Abraham Lincoln proclamou a emancipação de todos os cativos dos Estados Unidos. Deve-se registrar também o papel da esposa Harriet, pessoa culta que mostrou espírito corajoso já ao se casar com Emiliano, no tempo em que ele ainda era um recém-chegado imigrante católico que mal sabia falar a língua inglesa.

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African Meeting House, a Casa de Reuniões Africana

O historiador da Universidade de Leeds Lloyd Belton, estudioso de Mundrucu, disse recentemente: “É incrível que um imigrante negro brasileiro tenha sido a primeira pessoa na história dos Estados Unidos a desafiar a segregação em um tribunal. É ainda mais incrível que quase ninguém saiba quem ele é.“

O pernambucano inspirou uma geração de afro-americanos através de sua inconformidade e senso de justiça. Ele viajou com a família várias vezes para a terra natal depois que o Império Brasileiro o perdoou pela luta pregressa contra a regência. Os obituários em Boston atestaram que Emiliano e Harriet foram pessoas generosas, responsáveis, extremamente viajadas e muito respeitadas pela comunidade.

Pintura que representa Mundrucu. Por Moisés Patrício (2020)

Os Estados Unidos honram e admiram seus heróis, ignorando eventuais falhas em favor de uma história palatável e inspiradora. No Brasil, infelizmente, poucos erros passam despercebidos e pessoas que teriam muito a contribuir para a sociedade são rapidamente desconstruídas, com deslizes perfeitamente humanos assumindo, muitas vezes, injusto papel de destaque em suas biografias. Em uma entrevista de 2018, o engenheiro Ozires Silva, fundador da Embraer, contou que, em um jantar em Estocolmo, perguntou a membros do comitê do Prêmio Nobel por que jamais um brasileiro havia sido escolhido. Demonstrando embaraço, um deles respondeu: “Vocês brasileiros são destruidores de heróis. Os candidatos ao prêmio, ao contrário do que acontece com outros países, são duramente criticados por seus próprios conterrâneos”. Esse nosso comportamento nocivo, que talvez envolva ciúme, inveja ou desconfiança, seria um interessante tema de estudo para psicólogos e sociólogos.

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