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Bonecos de vodu

Minhas próprias filhas tramaram fazer contra mim um boneco de vodu. Sim: um boneco de vodu! Queriam me ensinar uma lição…

No caso, não era uma vingança por causa de alguma reprimenda. A lição que, no entender delas, eu deveria aprender é que bonecos de vodu realmente funcionam e que, por conta disso, eu deveria temê-los. Tudo começou dias atrás, quando, em um desenho animado, viram como uma feiticeira impunha sortilégios aos desafetos espetando agulhas em bonequinhos. Então Ágatha, a caçula, quis saber:

– Pai, acredita em bonecos de vodu?

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Pensei duas vezes antes de responder. Já escrevi em colunas anteriores que muitas vezes nós, adultos, maculamos o mundo encantado das crianças ao imporlhes nosso ceticismo sobre fadas, duendes, unicórnios, dragões e outras criaturas fantásticas. Contudo, concluí: não há nada de encantador, tampouco de pedagógico, em espetar bonecos para causar o sofrimento alheio. E com o dedo em riste, ao estilo do padre Quevedo, decretei:

– No “ecxiste”!

Mas a marota não se deu por satisfeita com a resposta.

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– Tem certeza, pai? E se fizermos um boneco teu, para testar? Quero só ver se tu não vai dar um pulo para cima, se espetarmos o boneco no bumbum!

Então, cometi o erro de desafiá-las:

– Podem fazer, não vai funcionar.

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E, nisso, a traquinas direcionou um olhar cúmplice para as irmãs e anunciou, em tom maquiavélico:

– Veremos…

***

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Cumpre citar que a ideia de se espetar agulhas em um boneco para infligir dor a alguém é, de certa forma, uma criação hollywoodiana. O vodu, contudo, realmente existe. Trata-se de uma expressão religiosa voltada ao culto dos espíritos ancestrais, de matriz africana e merecedora de todo respeito, que chegou a uma parte das Américas nos navios negreiros. No Haiti, o vodu esteve vinculado, historicamente, às revoluções dos escravos e de seus descendentes contra a opressão e o colonialismo, o que resultou em proibições aos seus ritos e em perseguições aos seus praticantes.

Nesse contexto, uma das estratégias das campanhas antivodu foi relacionar essa religião à ideia de magia negra e satanismo. Contudo, pesquisas antropológicas mais recentes atribuem aos ritos de vodu, inclusive, certo caráter terapêutico: em um país devastado por guerras, desgovernos e desastres naturais, é para os templos que a imensa parcela pobre da população haitiana converge em busca de cura para os problemas de saúde. Os bonecos, de fato, fazem parte dessa crença, porém, como amuletos, mantidos em lugares de destaque dentro de casa. Não são, portanto, alvo de agulhadas.

***

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Até considerei repassar essa explicação às gurias lá de casa, mas não houve tempo. Instantes depois, já estavam reunidas em torno das suas peças de Lego, às voltas com algum projeto novo, e deixei o assunto para lá.

Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, com as peças de Lego, elas montaram um boneco… de vodu. 

– Não havia outros materiais – justificou a Yasmin. – Por isso, fizemos com Lego mesmo.

– É hora de fazer o teste, pai – acrescentou Ágatha, em tom de mistério. – Esse é o teu boneco…

A seguir, a Yasmin – logo ela, a mais meiga das gurias lá de casa – deu um tapinha na cabeça do boneco.

E eu senti o tapa na hora, na minha própria cabeça.

***

O tapa foi leve, carinhoso, não doeu. Mas, naquele exato instantes, causou-me certa confusão mental. “O que estaria acontecendo? Como elas fizeram isso?”

A resposta veio com uma gargalhada, às minhas costas. Era a Isadora, a mais velha das três. Só então percebi o truque: enquanto as mais novas me distraíam com o monstrengo de Lego, Isadora havia se posicionado atrás de mim, a postos para dar o tapinha, simultaneamente ao tapa no boneco.

E, ao descobrir o artifício, percebi que minha experiência transcendental não passara de uma traquinagem, ardilosamente tramada pelas três.

“Traquinas!! Marotas!! A quem puxaram tal perfil zombeteiro?”, perguntei-me. Mas não é preciso consultar um xamã para saber a resposta.

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