Quem visita o Museu do Louvre, em Paris, certamente passa por uma pintura do italiano Paolo Veronese chamada “As Bodas de Caná” (Nozze di Cana, 1563). O óleo sobre tela, que levou 15 meses para ser concluído, foi encomendado por monges beneditinos para decorar o magnífico refeitório projetado por Andrea Palladio para o Monastério de São Jorge, em Veneza. Em 1797, a pintura foi confiscada como espólio de Guerra pelas tropas de Napoleão e jamais foi devolvida pela França.
É difícil deixar de perceber a obra-prima de Veronese entre as mais de 35 mil obras em exibição na antiga residência dos reis franceses, pela harmonia da composição e riqueza de detalhes, mas também pelas dimensões. O quadro, de dez metros de largura por sete metros de altura, é a maior pintura do museu parisiense.
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Ainda assim, pouquíssimos turistas dão à obra a devida atenção, provavelmente devido ao local em que está colocada, no chamado Salão de Estado, a maior peça do Louvre. Ocorre que, na parede oposta da mesma sala, centenas de câmeras, celulares e cotovelos se digladiam diariamente para admirar a pintura que é considerada a mais valiosa do mundo: a esplêndida, pequena (77 x 53 centímetros) e ilustre Mona Lisa (Gioconda, 1517), de Leonardo da Vinci, avaliada atualmente em cerca de 850 milhões de dólares.
Na representação de Veronese do primeiro milagre de Jesus, típica do Alto Renascimento, o sagrado se mistura ao profano, mostrando um evento bíblico adaptado ao período da concepção da obra. O simbolismo religioso é magnífico. Apesar de os convidados estarem na sobremesa, um cordeiro está sendo cortado sobre a figura central do Cristo, identificando o episódio de Caná como precursor do sacrifício da Eucaristia na cruz. Abaixo de Jesus, músicos – os pintores Ticiano, Bassano, Tintoretto e o próprio Veronese – tocam instrumentos diante de uma ampulheta, ressaltando o contraste entre vaidade e finitude. Outro paradoxo está presente nas opulentas vestes dos noivos, bem à esquerda na tela, e dos convidados, retratando monarcas e nobres da época (entre outros, Francisco I da França, Maria I da Inglaterra e o sultão otomano Solimão, o Magnífico), em oposição aos trajes simples de Jesus, da mãe dele e dos apóstolos, que chamam para si o protagonismo religioso da cena.
Em uma análise superficial, a primeira impressão é de incompatibilidade entre o tema piedoso e a extravagância da festa. Veronese, contudo, usou sutileza, rigor e inteligência para harmonizar o divino e o mundano, indissociáveis em nossa mortal natureza, elevando a pintura além da mera beleza artística e convidando a uma profunda reflexão. O relato das Bodas de Caná no segundo capítulo do evangelho de São João é um dos trechos do novo testamento que sempre me impressionaram. A presença de Jesus em uma festa de casamento denota o abono ao matrimônio, mas, bem mais que isso, descreve um casamento dentro de outro, com Cristo e Maria selando uma aliança entre o celestial e o humano. O simbolismo da transformação vai além da simples aparição do vinho (o divino), e mostra a dependência da água (o humano) na realização do milagre. A boa nova trazida por Jesus está igualmente representada: a água, usada tradicionalmente como purificação no Judaísmo, é substituída pelo sangue de Cristo na tradição cristã.
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No princípio do texto bíblico, o evangelista descreve a súplica tácita de Maria (“eles não têm vinho”), a resistência inicial de Jesus (“Minha hora ainda não chegou”), e a confiança da mãe, que alerta os servos (“Façam o que Ele lhes disser”). Finalmente, com a transformação da água em vinho, Jesus inicia o período essencial da missão dele na Terra, que culminará nas palavras na cruz: “Tudo está consumado”. Em outra clara conexão de Caná com a Paixão, o soldado romano crava a lança no peito de Cristo crucificado e do corte, segundo João, sai inicialmente água e, ato contínuo, sangue, sacramentando o simbolismo do primeiro milagre.
Observando a pintura de Veronese, notamos que Cristo parece não participar ativamente da festa. Em vez disso, o Nazareno olha diretamente para o observador da obra, sublimando o episódio cotidiano do matrimônio para conduzir ao sentido holístico da presença divina no universo material. Ao final do dia, quando o museu fecha as portas e o silêncio inunda o recinto, imagino Lisa Gherardini, a Mona Lisa, tentando desvendar com aquele enigmático olhar o significado místico da imagem na frente dela.
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