O professor Nestor Raschen fala com orgulho dos feitos do filho caçula, Matheus Rafael Raschen. Considerado uma promessa no basquete após passagens pelas seleções gaúcha e brasileira, o jovem surpreendeu: resolveu deixar as quadras e se dedicar aos estudos. Com a disciplina que sempre mostrou no esporte, passou a ter aulas no curso de Tecnologia de Alimentos, da UFSM. “Ele vinha se dedicando a uma pesquisa sobre o uso do micro-ondas na produção de embutidos”, conta o pai. O futuro promissor do jovem, no entanto, foi interrompido por um incêndio em uma boate em Santa Maria, que matou ainda outras 241 pessoas na madrugada de 27 de janeiro de 2013 e deixou 636 feridos. Passados cinco anos da maior tragédia da história do Estado, que interrompeu planos como o do santa-cruzense Matheus, ninguém foi punido. Indignados, os familiares lutam para que essas 242 mortes não fiquem impunes.
“É doloroso. Quanto mais a Justiça demora, menos fica o exemplo”, lamenta Raschen. Os sócios da boate Kiss, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, que acendeu o artefato que deu início às chamas, e o produtor Luciano Augusto Bonilha Leão chegaram a ser presos, mas foram soltos quatro meses depois. Dos proprietários, os pais reclamam que houve negligência. “Não é sempre que uma boate pega fogo e 242 pessoas perdem a vida. Era muito irregular.” Da banda, irresponsabilidade por usar um artefato adequado somente para espaços abertos. “Por uma diferença de R$ 45,00 não compraram o eletrônico. Machuca quando economizam no trivial.” Mas para que haja justiça, os familiares querem que o poder público também seja punido por permitir o funcionamento da boate. “Se tivesse uma pessoa morta na Kiss, já seria sério. Mas foram 242.”
Na capa da página do Facebook, o sobrevivente da tragédia, Maike Adriel dos Santos, 25 anos, exibe uma foto com cinco amigas em uma festa. A imagem é da comemoração do aniversário de Andrielle Righi da Silva (no meio) e deveria ser uma lembrança feliz, não fosse pelo fato de que essa foi a última vez que o sorriso delas ficou retratado. Pouco depois, quatro das jovens morreram no incêndio. Apenas Maike e Rafaela conseguiram sobreviver. “É triste saber que aquelas vidas foram ceifadas por negligência”, lamenta ele, que ficou uma semana em coma e um mês internado no Hospital Universitário de Santa Maria com queimaduras nas mãos, braços e vias respiratórias. “Eu só espero que os responsáveis sejam condenados. Eles tratam essa tragédia como se fosse uma briga de bar.”
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Maike com Luana, Vitória, a aniversariante Andrielle, Rafaela – a única que também sobreviveu – e Merylin
Foto: Reprodução/Facebook
Assim como revolta, o incêndio na boate Kiss também motivou o estudante de Desenho Industrial a buscar uma solução para que tal situação não se repita. Dedicou-se a ouvir relatos de outros sobreviventes para entender as dificuldades vividas naqueles momentos de pânico e descobriu: a sinalização da saída não foi suficiente. Com a fumaça escura e densa, pouco se via. Assim, o trabalho de conclusão de curso, no qual foi aprovado com nota 10, sugere que seja obrigatório que ambientes como esse tenham luzes luminosas indicando a saída, como ocorre nos aviões. “Pensar nisso foi meu meio de superar. Infelizmente, é assim. Precisa alguém morrer para mudar alguma coisa.”
O que levou Matheus Raschen à boate Kiss na noite do incêndio foi uma série de coincidências. A formatura de uma amiga fez com que ele passasse o fim de semana em Santa Maria. Foi para ajudar uma turma de formandos que preferiu a Kiss a outra casa noturna. Com o local superlotado, ainda emprestou dinheiro para que uma colega fosse embora de táxi, minutos antes de o fogo ter início. Perto da porta, Raschen logo conseguiu sair da casa notura e provavelmente teria sobrevivido. Mas ele e um grupo de jovens decidiram voltar e ajudar a salvar quem estava caído. Em uma dessas entradas, ele não retornou mais. “O que nos conforta é saber que o Matheus resolveu ajudar. Tu vai ajudar quem? Quem está mais precisando. Naquele momento, eram aquelas pessoas que precisavam. Acho que ele não conseguiria dormir tranquilo se soubesse que não socorreu ninguém”, conta Nestor.
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Aos 20 anos, Matheus teve seus sonhos interrompidos
Foto: Reprodução/Gazeta do Sul
Assim como aconteceu com Matheus, a tragédia da boate Kiss está cheia de histórias de acasos, de vítimas que não eram para estar ali. “Conheci a família de um rapaz que tinha levado quatro meninas na festa, mas não iria ficar. Pediu pra usar o banheiro e o segurança permitiu. Quando ele tentava sair, começou a entrar gente. Por educação, ele esperou. Ficou parado próximo à porta e nunca mais saiu”, diz Nestor.
Para homenagear quem teve os sonhos interrompidos pelo incêndio, haverá uma programação especial em Santa Maria durante este fim de semana, que prevê um ato ecumênico e a tradicional vigília. “O momento mais emocionante é quando eles leem os nomes das vítimas e, em seguida, toca-se um sino.” Será lançado um concurso entre arquitetos para projetar o memorial que será construído no local da boate. Por enquanto, espera-se o final do julgamento para destruir o prédio, que, segundo a defesa, contém provas. O espaço, que Nestor espera que seja um “local de vida”, servirá para relembrar as vítimas do incêndio. Mas também para alertar que esse tipo de irresponsabilidade não se repita.
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O desejo de que se faça Justiça une os pais dos jovens mortos no incêndio. Para cobrar que essa tragédia não fique impune, em março de 2013 foi criada a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), presidida por Sérgio Silva, que perdeu o filho na boate. “Com a impunidade, quem está perdendo é a sociedade gaúcha. Nós já perdemos tudo o que tínhamos para perder.”
A entidade luta para reverter a decisão do Tribunal de Justiça e pede que os quatro denunciados pelo Ministério Público sejam julgados no Tribunal do Júri. A luta ganhou um reforço importante: o presidente da OAB/RS, Ricardo Breier, passou a integrar a defesa da associação. “Se a justiça vai ser feita ou não, não cabe a mim. Cabe a mim procurar. Se não chegarmos onde quisermos, nós tentamos. Não me omiti”, alega o presidente.
Silva é um dos pais que estão sendo denunciados pelo MP por calúnia, após divulgar cartazes com a imagem de um promotor, em Santa Maria, exigindo que os responsáveis sejam indiciados. “O que a gente pode esperar depois de sofrer tanta imoralidade?”
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Desde a tragédia, houve mudança nas legislações. No Estado, a Lei Kiss foi aprovada ainda no final de 2013. No País, os deputados aprovaram uma lei de proteção contra incêndios, mas o texto foi publicado com 14 vetos do presidente Michel Temer, o que desagradou à asssociação. “A Lei Kiss é uma palhaçada”, reclamou.
OS NÚMEROS
A Polícia Civil indiciou 16 pessoas
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Apenas 4 ainda podem ser condenadas
Em um tribunal militar, 3 bombeiros foram julgados e condenados a penas brandas
Apenas 1 bombeiro foi condenado na Justiça por fraude em documentos
27 de janeiro de 2013
Era entre 2 e 3 horas quando o vocalista da banda Gurizada Fandangueiro, Marcelo de Jesus dos Santos, usou um artefato pirotécnico, conhecido como sputnik, durante a música Amor de Chocolate. As chamas atingiram o teto da casa noturna, revestido com forro acústico de poliuretano, material que propaga rapidamente o fogo. Além disso, a espuma incendiada gerou uma fumaça tóxica responsável pela morte de parte das 242 vítimas. Morreram na hora 234 pessoas. Foram 636 feridos.
28 de janeiro de 2013
A prisão temporária dos sócios da boate Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann e dos músicos Luciano Augusto Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, da banda Gurizada Fandangueira, é decretada.
1° de fevereiro de 2013
Passados quatro dias, Matheus Rafael Raschen, então com 20 anos, não resiste à intoxicação e morre no HPS de Porto Alegre, para onde foi transferido de helicóptero. Ele foi a vitima 236 da tragédia. Depois dele, outros seis morreram.
29 de maio 2013
Após quatro meses na Penitenciária Estadual de Santa Maria, os sócios da Kiss e os dois integrantes da Gurizada Fandangueira recebem a liberdade provisória.
Agosto de 2015
Três pais de vítimas do incêndio são denunciados pelo Ministério Público por calúnia. O promotor Ricardo Lozza, alegou ter se ofendido por cartazes que foram colados nas ruas de Santa Maria com sua foto, apontando-o como um dos culpados da tragédia. Os promotores Joel Dutra e Maurício Trevisan se sentiram ofendidos por um artigo publicado nos principais jornais de Santa Maria.
1° de setembro de 2015
O ex-chefe dos Bombeiros de Santa Maria, major Gerson da Rosa Pereira, é condenado a seis meses de prisão por fraude em documentos do inquérito policial que apurou o incêndio. A pena foi convertida em prestação de serviços à comunidade.
27 de julho de 2016
A Justiça de Santa Maria acolhe integralmente a denúncia do Ministério Público e determina que os quatro réus sejam julgados pelo Tribunal do Júri.
13 de abril de 2017
A defesa do vocalista da banda, Marcelo de Jesus dos Santos, entra com um recurso para que o julgamento não vá ao Tribunal do Júri.
1° de dezembro de 2017
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decide acolher o recurso dos réus para que a acusação sobre eles deixasse de ser homicídio doloso (com intenção de matar) para homicídio culposo (sem intenção). Há empate no voto dos desembargadores (3 a 3). Assim, a legislação estabelece que prevaleça a decisão que favoreça os autores do recurso.
8 de janeiro de 2018
O MP entra com recurso contra a decisão do Tribunal de Justiça do Estado e pede que os quatro réus sejam julgados no Tribunal do Júri. Ainda não houve uma decisão.
24 de janeiro de 2018
A Associação de Familiares de Vítimas da Tragédia de Santa Maria solicita à Prefeitura a não demolição do prédio da Kiss até o final do julgamento dos réus. O advogado Ricardo Breier, presidente da OAB/RS, entende que ali existem provas contundentes para a condenação dos acusados.
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