Às 16h30 da última quinta-feira, uma viatura arrancou da frente de um prédio sem identificação ou janelas, no Centro de Santa Cruz do Sul. O carro da Polícia Civil estava carregado de computadores adaptados para jogos de azar recolhidos de um bingo flagrado em funcionamento na Rua Fernando Abott. Nenhuma máquina sobrou, e o estabelecimento clandestino foi fechado. Passadas apenas três horas e 30 minutos, o lugar já recebia clientes de novo. No início da noite, as apostas eram feitas normalmente.
A Gazeta do Sul flagrou toda a movimentação desde o fechamento até a reabertura. Pouco mais de duas horas após os policiais saírem, funcionários começaram a transportar novas máquinas. Os equipamentos vinham de um depósito a poucos metros dali. Na prática, a ação da polícia conseguiu impedir apenas algumas horas de operação. O baixo custo com as sucatas de computadores, o fato de a legislação brasileira enquadrar os jogos de azar como contravenção penal e a tolerância que os bingos clandestinos encontram junto à população formam as bases para a manutenção de uma atividade ilegal, capaz de se reestruturar com facilidade.
Embora possam ser vistos como algo inocente, os jogos de azar são a porta para outros crimes, como a lavagem de dinheiro. Para que os valores passem a circular no mercado de forma aparentemente legal, os proprietários precisam usar estabelecimentos de fachada. A polícia chegou a realizar uma série de operações em Santa Cruz do Sul com foco no combate aos bingos.
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No entanto, as penas brandas para os responsáveis e a agilidade com que o jogo se reestrutura são entraves que dificultam o trabalho investigativo. “É um negócio muito lucrativo. A polícia vai lá, apreende e no mesmo dia eles já estão reabrindo porque as penas são baixas. A cada vez eles apresentam um novo responsável”, afirma o delegado Marcelo Chiara Teixeira, responsável pela Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA).
Um dos fatores que contribuem para a alta lucratividade é o uso de equipamentos sucateados. Os computadores, que aumentam os lucros do bingo por permitirem um maior número de jogos por apostador, são tão ultrapassados que, quando apreendidos, sequer podem ser doados e acabam encaminhados para destruição e reciclagem. Uma das suspeitas é de que as máquinas sejam adquiridas na Região Metropolitana.
Embora não existam registros que permitam precisar o valor arrecadado com a atividade, a estimativa de apostadores e pessoas envolvidas no esquema é de que, em média, o lucro chegue a cerca de R$ 3 mil por dia. O valor mensal chegaria a R$ 100 mil. Os verdadeiros proprietários das casas, no entanto, em geral não têm contato com os estabelecimentos. Assim, quando ocorre uma operação policial, não são responsabilizados.
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Como funciona
O jogo é vendido por séries. Cada série é formada de seis cartões, com 15 números cada. Elas costumam ser vendidas a R$ 0,50 (para prêmios de R$ 20,00 a linha ou R$ 50,00 o bingo) ou R$ 1,00 (para prêmios de 50,00 e 100,00).
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São 90 números que podem ser sorteados. No entanto, em geral até o 55º já se tem um vencedor. É possível ter mais de um vencedor por rodada. Nesse caso, o prêmio é dividido entre eles.
Ganha o prêmio mais alto (R$ 50,00 ou R$ 100,00 em jogadas normais) quem completar os 15 números do cartão. Ele grita “bingo” para alertar quem comanda o sorteio. Recebe o prêmio menor (R$ 20,00 ou R$ 50,00) quem completar uma linha de cinco números.
O valor é pago na hora em dinheiro. Da mesma forma, o valor do prêmio é recebido imediatamente após a rodada, em dinheiro. O que atrai os apostadores é justamente a possibilidade de multiplicar os valores em poucos segundos. “Quem vence não levanta e vai embora. Ele vai seguir jogando”, alerta um apostador.
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O estabelecimento
Os prêmios
Os apostadores
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Quando funciona
Onde
Os dois lados
Contra
A favor
Ambiente escondido e insalubre
Na tentativa de driblar a impossibilidade de ter janelas e portas abertas, para não denunciar a atividade, os bingos costumam ser equipados com ar-condicionado, ventiladores e exaustores. Ainda assim, o forte cheiro de fritura misturado ao dos cigarros e a pouca ventilação formam a atmosfera comum nos bingos clandestinos. A insalubridade, no entanto, parece passar despercebida pelos apostadores.
Em um ambiente isolado, para ninguém enxergar de fora, muitas pessoas, principalmente idosas, ficam ali dentro. Há somente uma saída e normalmente permanece fechada. Há um olheiro na porta. “É um ambiente de insegurança enorme. Além de fazer mal à saúde, ainda há o risco de incêndio”, observa o delegado Marcelo Chiara Teixeira.
Muitas informações que chegam à polícia, conforme o delegado, são repassadas por familiares de apostadores. “As pessoas nos ligam desesperadas porque os parentes estão perdendo tudo no jogo. Isso é um vício. Muitas vezes são pessoas humildes, que gastam o dinheiro da família nisso”, afirma.
A polêmica da lei
A pena prevista para a exploração de jogos de azar é de três meses a um ano, além de multa. Em janeiro, no entanto, a Turma Recursal Criminal do Tribunal de Justiça do Estado formalizou um entendimento de que o jogo de azar não pode ser considerado uma contravenção penal. A lei das contravenções é anterior à Constituição de 1988 e, nessa interpretação, fere os direitos individuais. O despacho não permite a abertura dos bingos, pois eles precisariam de regulamentação, mas exclui as punições aos envolvidos.
Desde o ano passado, tramita no Senado um projeto de lei que prevê a legalização de jogos de azar, como bingos, caça-níqueis e jogo do bicho. Um dos principais argumentos dos defensores é de que outros países lucram com a arrecadação de impostos sobre essa contravenção. O vício, que acarreta problemas de saúde, e a ligação do jogo com outros crimes estão entre os pontos de quem é contra.
Quinta-feira, 13 de julho
15h20 – Agentes coordenados pela Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) chegam ao bingo na Rua Fernando Abott, próximo à esquina com a Rua Marechal Deodoro. Os apostadores deixam o local em seguida. Seis funcionários são identificados.
16h30 – Os quatro policiais levam cerca de uma hora para remover os computadores e transportá-los. Os agentes deixam o prédio com 51 monitores, mais 43 CPUs e ainda seis máquinas caça-níqueis, que serão encaminhados para destruição.
17 horas – Alguns minutos depois da polícia deixar o local, os mesmos funcionários retornam para dentro do prédio. Começa a preparação para receber novos computadores.
18h50 – Começam a transportar os monitores e outras peças. Para isso, só precisam atravessar a rua. Do outro lado está o depósito. Por cerca de uma hora, correm de um lado para o outro com caixas e computadores em mãos. Apostadores passam e perguntam pela reabertura. A promessa é de que às 20 horas o bingo estará operando.
19h30 – A porta permanece fechada para não levantar suspeitas. Os apostadores começam a chegar. O segurança, com o suporte de uma câmera, é o responsável por atender os clientes. O olheiro abre a porta, os jogadores entram e rapidamente ela é fechada de novo.
20 horas – Nesse horário, os computadores ainda não estão prontos para rodarem os jogos. Os funcionários trabalham na reinstalação dos equipamentos para permitir que as apostas recomecem. Ainda assim, alguns apostadores permanecem ali aguardando o começo do jogo.
21h30 – Um repórter, com uma câmera escondida, circula por dentro do bingo. Nesse momento, o jogo já está ocorrendo normalmente. Pelo menos seis funcionários trabalham no estabelecimento. Além do segurança, duas funcionárias controlam o fluxo do caixa e o sorteio. Outras duas são responsáveis pela venda das séries. Também há alguém responsável pela venda de bebida e comida.
As rodadas duram poucos minutos. Antes do início de cada jogada, as vendedoras passam oferecendo as séries para os apostadores. Parte deles prefere marcar os cartões à mão. Nesse caso, em geral, ele joga com poucas séries. Os que apostam valores mais altos utilizam os computadores para fazer a marcação automaticamente.
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