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Bicentenário: o tabaco foi uma base econômica para as colônias

Estabelecidas em várias partes do Sul do Brasil, as propriedades produtoras de tabaco existem, em sua maioria, nas regiões de colonização germânica no três estados. Há de se ressaltar, contudo, que o tabaco é uma espécie originária das Américas e seu cultivo era feito, inicialmente, por povos indígenas que habitavam desde a atual Bolívia até a América Central. Com a migração dessas populações e a chegada dos portugueses e espanhóis, a planta foi levada para diversos países.

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Em 1824, quando o governo imperial decidiu criar o sistema de colônias para assentar os imigrantes germânicos nos arredores de São Leopoldo, o tabaco foi um dos muitos cultivos cujo plantio foi incentivado, junto com batata, mandioca, milho, feijão e outros. Foi a partir da criação da colônia de Santa Cruz, em 1849, que a fumicultura ganhou destaque e passou a exercer papel fundamental no desenvolvimento. Em plena véspera de abertura da 10a Conferência das Partes (COP-10) da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco, no Panamá, na segunda-feira, quem contextualiza todos esses acontecimentos é o historiador Olgário Paulo Vogt, responsável por extensa pesquisa acerca
do tema.

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Souza Cruz foi pioneira na implantação do Sistema Integrado de Produção e na expansão da fumicultura

Contato dos imigrantes com essa cultura deu-se no Brasil

Apesar de hoje a imensa maioria da produção de tabaco no Brasil ocorrer em áreas de imigração germânica nos três estados da Região Sul, segundo Olgário Vogt, não existe certeza de que os imigrantes cultivavam ou tinham conhecimento de técnicas de beneficiamento na Europa. Ainda que tivessem, salienta, não havia as condições necessárias para alavancar a produção. Por lá tem-se o clima temperado, predominante na Europa Central, e que é muito diferente do clima subtropical do Sul do Brasil.

Vogt recorda que, no início, seja no primeiro período (1824) ou no segundo (1849), as colônias eram criadas e geridas pelo governo da Província. “Elas foram criadas como um chamarisco, para fazer propaganda de uma iniciativa que deu certo e fazer os imigrantes virem por conta própria.” Para alcançar esse sucesso, o diretor da colônia distribuía uma grande variedade de sementes aos novos assentados, com o objetivo de testar quais culturas tinham possibilidade de prosperar. “Muitos também trouxeram sementes da Europa, mas de espécies que aqui não vingavam”, observa.

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Assim, os cultivos que deram certo foram justamente os originários das Américas, como milho, batata-doce, mandioca, amendoim e feijão. Todos esses, embora também fossem mercadorias, tiveram maior importância nos primeiros anos para a subsistência das famílias recém-chegadas. Já o tabaco, mesmo que parte fosse destinada para consumo próprio, na forma de charutos e cigarros de palha, desde o início foi um produto com objetivo comercial.

No entendimento do historiador, o fato de Santa Cruz estar longe dos grandes mercados consumidores de outros cultivos – na época, Rio Pardo e Porto Alegre – foi o motivo de a colônia ter se especializado na produção de tabaco. Se hoje ir de Santa Cruz a Rio Pardo exige menos de 30 minutos de carro em uma estrada asfaltada, no século 19 havia apenas picadas estreitas abertas no mato. O deslocamento ocorria, comumente, no lombo dos burros ou em carroças para os mais abastados. Já para a Capital, o transporte se dava pelo Rio Jacuí, a bordo de lanchões.

“Com isso, o ganho dos imigrantes com outros produtos era muito baixo. O tabaco se sobressai por ter um alto valor agregado.” Vogt lembra ainda que, naquele período, a variedade predominante era o burley, de secagem natural feita em galpões abertos e de ciclo mais longo entre o plantio e a comercialização. A banha de porco e o milho, acrescenta, também tiveram grande relevância para a consolidação e desenvolvimento das colônias.

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Estufas revolucionaram a produção

Com o crescimento das lavouras e do volume produzido, o comércio de tabaco ganhou força e começaram a aparecer os primeiros intermediadores. Eram comerciantes que compravam a produção dos colonos e revendiam em Porto Alegre para consumidores e exportadores. “Alguns vão crescer de forma significativa e criar empresas, como foi o caso de Augusto Hennig, cuja família se estabeleceu onde hoje é Sinimbu”, diz Olgário Vogt.

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Outro ponto que explica o êxito do tabaco é a rentabilidade. É preciso lembrar que os lotes destinados a cada família de imigrantes eram pequenos e tomados pela vegetação nativa, de modo que a área própria para a agricultura era limitada. Dessa forma, nenhum outro cultivo trazia rentabilidade tão grande ao agricultor quanto o tabaco. “Os colonos tinham muitos filhos e as crianças começavam a trabalhar cedo junto aos pais, então a falta de mão de obra não era um problema.”

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A grande revolução aconteceu em 1917, quando a empresa Souza Cruz (hoje BAT Brasil) começou a operar em Santa Cruz. “Eles introduziram o sistema de secagem artificial, em estufas, porque até então só se produzia fumo de secagem natural, em galpões”, enfatiza Vogt. Até aquele momento, as regiões Nordeste – sobretudo a Bahia – e Sudeste eram os maiores produtores brasileiros. Junto com as estufas, a Souza Cruz trouxe sementes da variedade virgínia e profissionais para orientar os fumicultores, profissão que depois se formalizou na figura do instrutor.

Outras práticas implementadas foram o financiamento para as despesas do plantio, a construção de estufas e o uso dos primeiros fertilizantes químicos. Esse modelo introduzido pela Souza Cruz, afirma Vogt, foi o embrião do Sistema Integrado de Produção e seria copiado por muitas empresas e cooperativas nas décadas seguintes. Para ele, esse custeio do plantio e garantia de compra da produção foram fundamentais para a consolidação do tabaco.

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“Se eu tiver de escolher apenas um fator responsável por alavancar a produção, é esse. Foi a partir daí que o tabaco se expandiu para Santa Catarina e Paraná, fazendo com que o Sul superasse, e muito, o Nordeste.” Hoje, os três estados do Sul possuem mais de 137 mil famílias que se dedicam total ou parcialmente à produção de tabaco.

Mudança para a variedade virgínia e a secagem em estufas provocou uma grande revolução na produção
Até 1917, predominava a variedade burley e os galpões de secagem natural eram comuns na região

Fundamental no desenvolvimento

Olgário Vogt não tem dúvidas de que o tabaco teve papel fundamental na consolidação das colônias e na consequente criação de diversos municípios nas regiões produtoras. Ele lembra que, diferentemente de localidades como Cachoeira do Sul e Rio Pardo, onde há grandes concentrações de terra, em Santa Cruz a pequena propriedade predomina e a renda gerada pelo tabaco foi de grande importância para a economia. Isso porque os colonos vendiam a produção aos comerciantes ou mesmo trocavam por outros produtos, ferramentas e utensílios domésticos.

Assim, sublinha o historiador, conforme a produção foi aumentando, cresceu em paralelo a demanda por ferramentas, máquinas e outros insumos necessários ao manejo. “Um exemplo são os arados e as prensas. A partir disso se criaram empresas centenárias, como a Máquinas Binz e a Máquinas Schreiner, que no início se dedicavam a fabricar equipamentos exigidos pela cadeia produtiva do tabaco.” Com a expansão das fumageiras, o processo de beneficiamento também cresceu e passou a exigir cada vez mais mão de obra, gerando empregos nas cidades.

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Com a terra distribuída para milhares de famílias, esses municípios também alcançaram um desenvolvimento socioeconômico e industrialização superiores a outros onde se destacam os latifúndios e os cultivos de soja, milho e arroz. “Onde há renda circulando, há consumo. Para consumir, ou você traz de fora ou passa a produzir para suprir essas demandas. Com isso, surgiram outras empresas muito importantes e que fabricam materiais que não estão diretamente ligados à agricultura”, afirma.

Historiador diz não acreditar em mudanças a curto e médio prazo

Às vésperas de mais uma Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), evento que sempre traz apreensão ao setor devido à possibilidade da imposição de limitações para a produção e comercialização do tabaco e derivados, Olgário Vogt não acredita que a cadeia produtiva sofra impactos negativos expressivos no curto e médio prazo. “Se você analisar de uma forma ampla, o consumo de tabaco não está reduzindo. Em locais onde há incremento da renda, como a China, eles estão fumando muito.”

Diante de uma demanda que está, no pior dos cenários, estável, Vogt não vê possibilidade de limitações para o plantio ou de criação de regiões produtoras. Para ele, um cenário possível é a expansão da produção na África, em países como Zimbábue e Malawi, onde a mão de obra é mais barata. “Eles, no entanto, enfrentam conflitos que desestabilizam o mercado e não dão confiança para que as multinacionais do ramo possam se abastecer a partir de lá.” Dessa forma, entende que a estabilidade brasileira vai garantir o futuro.

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“Não vislumbro grandes temores nas próximas décadas para quem planta e comercializa tabaco”, afirma. Ainda assim, reforça a importância de políticas públicas não para impedir ou limitar a produção, mas para oferecer aos fumicultores que assim desejarem a possibilidade de migração para outros cultivos. “Em uma situação hipotética, uma proibição para a produção seria desastrosa para os fumicultores e provocaria grandes problemas financeiros a muitas empresas e prefeituras.”

Quem é Olgário Paulo Vogt

Olgário Paulo Vogt é natural de Santa Cruz do Sul. Graduou-se em Estudos Sociais – Habilitação em História pela antiga Faculdades Integradas de Santa Cruz (Fisc) e fez o mestrado em História do Brasil na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Em sua dissertação, abordou justamente a história do tabaco no Brasil entre 1849 e 1993. O trabalho tornou-se uma das principais referências para pesquisas sobre o tema no Brasil. Em 2006, fez doutorado em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), instituição onde lecionou por 29 anos nos cursos de graduação e pós-graduação.

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Iuri Fardin

Iuri Fardin é jornalista da editoria Geral da Gazeta do Sul e participa três vezes por semana do programa Deixa que eu chuto, da Rádio Gazeta FM 107,9. Pontualmente, também colabora nas publicações da Editora Gazeta.

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