A imigração alemã para o Rio Grande do Sul, no século 19, mostrou diversas facetas, algumas muito inusitadas. Uma está associada à presença de pomeranos naquela que por muito tempo foi a mais ao sul de todas as colônias formadas por germânicos. É a Colônia São Lourenço, que resultou no atual município de São Lourenço do Sul, a 75 quilômetros de Pelotas, ou a 230 quilômetros de Santa Cruz do Sul.
A ocupação da área de certo modo está relacionada com a Revolução Farroupilha. Foi ao longo dos dez anos de conflito que a navegabilidade do Rio São Lourenço, a cujas margens a colônia surgiu, se revelou viável, ligando à Lagoa dos Patos. Assim, por volta de 1850 um proprietário de casa senhorial, José Antônio de Oliveira Guimarães, fez parceria com Jacob Rheingantz, comerciante renano, para atrair colonos. Graças a isso, no dia 18 de janeiro de 1858, os primeiros 88 imigrantes desembarcaram ali.
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Quem ajuda a contar essa história é um advogado. Jairo Scholl Costa é bisneto de Johann Joseph Baptist Alexander Scholl, que administrou essa colônia. E foi pela via da ficção que buscou registrar esses feitos. Com o romance O pescador de arenques, lançado em 2007 e que mereceu segunda edição em novembro de 2023, Scholl narra a saga dos pomeranos, iluminando sua história, sua cultura e sua jornada até o distante extremo sul do Brasil.
Se alguém pretende entender mais profundamente o perfil socioeconômico e cultural da região Sul do Rio Grande do Sul e, especialmente, compreender a história, a cultura e as especificidades de um povo, os pomeranos, a dica é que recorra a um romance. Em 2007, o advogado Jairo Scholl Costa surpreendeu o ambiente da literatura gaúcha (e brasileira) com uma vigorosa narrativa apoiada em sólida pesquisa: O pescador de arenques, em 438 páginas, foi lançado pela Educat, a Editora da Universidade Católica de Pelotas.
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A obra teve receptividade tão entusiástica nos anos seguintes que restou esgotada. E foi no contexto da proximidade das comemorações alusivas aos 200 anos da imigração alemã no Brasil, em 2024, que uma segunda edição veio à luz, em novembro de 2023, agora pela editora paulista Pragmatha. É a oportunidade de aproximar esse texto (e seus ensinamentos) das novas gerações, as mais atuais.
O enredo está centrado no personagem Peter Kampke, que deixa a sua Pomerânia natal, no norte da Europa, para buscar a sorte no extremo sul do Brasil, em meados do século 19, ajudando a conformar a realidade de São Lourenço do Sul, hoje com seus 42 mil habitantes. A nova edição preserva rigorosamente o texto original, sem qualquer mudança ou ampliação, e inclusive mantém a mesma capa, por decisão do autor. Pode ser adquirida em livrarias (físicas ou virtuais), a R$ 70,00.
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Como Scholl Costa observa, os pomeranos guardam peculiaridades, de cultura e de vocações, muito diferentes das dos outros povos que ocupavam as regiões que posteriormente viriam a formar a Alemanha unificada, a partir de 1871. Os pomeranos habitavam a área situada no litoral do Mar Báltico, hoje localizada no norte da Polônia, e parte dela no norte da Alemanha, o Mecklenburg-vor-Pommern. Pelas características do espaço em que moravam, eram eminentemente navegadores e, por extensão, pescadores, encontrando em peixes (como o arenque do título do romance) um meio de sustento.
Ao peixe pescado no mar agregavam as batatas (inglesas) que as mulheres plantavam, elas que haviam ficado cuidando do lar e dos filhos. Assim, peixes e batatas tornaram-se itens centrais na culinária desse povo. E isso aconteceu também no Brasil. A tal ponto que, a partir da chegada dos imigrantes à Colônia São Lourenço, em 1858, oito anos após a colonização de Santa Cruz do Sul, a região tornou-se um pujante centro de comercialização de batata inglesa, escoada para os mais diversos grandes centros do Estado e do País.
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Além de O pescador de arenques, Scholl Costa lançou o romance Noivas de preto, referindo outro costume ancestral dos pomeranos, e diversos livros de cunho histórico ou memorial. Com eles, não apenas contou ou fixou a odisseia dos pomeranos pelo mundo, como ajudou a divulgar sua rica e diferenciada cultura, única em realidade brasileira.
Magazine – O que levou o senhor a, na condição de advogado, determinar-se a elaborar um romance sobre os pomeranos? Quando essa ideia surgiu?
Conversas sobre imigração eram muito comuns na nossa família, pois meu bisavô, João Baptista Scholl (Johann Joseph Baptist Alexander Scholl), foi o continuador da colonização alemã de São Lourenço do Sul, após a morte de Jacob Rheingantz. Meu avô Julio Scholl, que teve muita convivência com o pai, era um arquivo vivo, guardando documentos e histórias de meu avô. E o que mais me marcou eram as referências ao povo pomerano, que formava a maioria da massa imigratória.
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Segundo ouvia de seu pai, graças aos imigrantes pomeranos a colônia tinha sido um sucesso, pois eram excelentes plantadores de batata-inglesa. Esse tubérculo, juntamente com os demais produtos da pequena propriedade rural de origem europeia, era exportado por veleiros denominados iates ao porto de Rio Grande, e depois para o Rio de Janeiro e Montevidéu. Isso proporcionou o crescimento da colônia e a pujança econômica ao ponto de se transformar no município de São Lourenço do Sul.
Vale registrar que em 1858 a Colônia de São Lourenço era a mais meridional e isolada das colônias alemãs do Brasil. Embora os pomeranos fossem decisivos com seu trabalho, eles não eram reconhecidos como deveriam em São Lourenço do Sul. Ainda que fossem mais de 80% dos imigrantes, outros grupos étnicos germânicos eram mais valorizados.
De minha parte, ainda na infância, interessei-me por esse povo e passei a conhecê-lo melhor. Com o passar dos anos, quando adulto, decidi escrever sobre eles para que fossem conhecidos verdadeiramente. Então escrevi dois romances históricos, no caso O pescador de arenques e Noivas de preto.
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Como foi o processo de pesquisa para a elaboração de O pescador de arenques? O senhor partiu de documentos? Aproveitou memória pessoal ou familiar?
Embora minha família viesse do Hunsrück, meu interesse pelos pomeranos se manteve vivo durante toda a minha existência. Colhi inumeráveis informações orais de meu avô, examinei documentos que ele possuía, realizei pesquisas em literatura nacional e estrangeira sobre os pomeranos. Por duas vezes fui à Pomerânia na coleta de dados, tanto na parte ocidental, na Alemanha, como na oriental, na Polônia.
Quais as principais marcas que a colonização pomerana deixa ainda hoje em São Lourenço?
Creio que uma das maiores marcas que os pomeranos deixaram em São Lourenço do Sul foi o idioma, uma língua que ainda é falada corriqueiramente na cidade e no interior. Os pomeranos são um povo na diáspora; poucos permanecem no que sobrou da antiga pátria, se espalhando pelo mundo. Por isso se diz que onde está viva a língua pomerana, ali está a Pomerânia. Difere do alemão na medida em que tem elementos da antiga língua wende (os protopomeranos), tribo eslava oriunda da parte mais oriental da Europa e inclusive com raízes no Quirguistão; e elementos do Baixo Alemão ou Saxônio antigo, que era dominante nas costas do Mar do Norte e do Mar Báltico.
De modo que a língua se transformou na própria pátria dos pomeranos, visto que na Europa, especialmente na Polônia, país que ocupou mais de 85% do antigo território pomerano, esse idioma não é mais falado. Assim como desapareceram outros elementos de sua cultura, em vista da remoção forçada dos pomeranos de suas terras entre janeiro e fevereiro de 1945 pelo Exército Vermelho, na Segunda Guerra Mundial.
O território foi ocupado por poloneses do Leste da Polônia, também deslocados por Stálin, que os levou para Oeste, no caso território pomerano pertencente à Alemanha.
Naturalmente que em São Lourenço do Sul ainda se encontram outros elementos da cultura, tais como canções, lendas, a tradição das ervas medicinais, a gastronomia, como o peito de ganso defumado, o bolinho de batata conhecido por Rivelspah e a sopa de sangue de ganso, a Schwarzsauer.
O senhor salienta que os pomeranos são eminentemente navegadores e também pescadores. Quais são as razões históricas ou culturais para que isso aconteça?
Os pomeranos, sobretudo quando eram somente wendes, a ocupar a parte meridional do Mar Báltico, dedicaram-se, no começo de sua história, a buscarem o mar para a sua sobrevivência. E aí se qualificaram como construtores navais e pescadores. Na pesca, tornaram-se exímios pescadores de arenque (herring). Esse peixe, semelhante à sardinha, com 20 a 25 centímetros de comprimento, foi por séculos uma de suas principais fontes de proteína, seja consumido in natura, ou defumado, ou salgado.
Também pescavam enguias, solhas, cavalas e peixes de água doce, abundantes nos rios e lagos da Pomerânia. Mais tarde, com o advento do cultivo da batata-inglesa, os pomeranos tiveram a adição desse alimento, mas nunca abandonaram seu atávico interesse pelo mar, seja como marinheiros ou pescadores. Aliás, esse comportamento ainda se manifesta vivamente nos descendentes de pomeranos de São Lourenço do Sul.
Além de São Lourenço, que outros municípios ou cidades da região hoje têm presença do elemento pomerano?
Atualmente, além de São Lourenço do Sul, a etnia pomerana encontra-se em outros municípios, especialmente da Serra dos Tapes, tais como Pelotas, Turuçu, Canguçu, Camaquã, Arroio do Padre e outros. Um dos fatores principais para a migração interna foi o crescimento das famílias das gerações seguintes, de modo que começaram a faltar terras para estes na Colônia de São Lourenço. Isso os obrigou a procurarem terras inicialmente nos municípios que se limitavam com São Lourenço do Sul.
Em que medida os pomeranos se diferenciam de outros grupos de germânicos que vieram ao Rio Grande do Sul?
Os pomeranos se diferem dos outros grupos germânicos porque a sua origem inicial é eslava. Eles tinham língua própria, que era falada pelos wendes (protopomeranos) e pertencia ao grupo das línguas sorábicas, enquanto a língua alemã era de raiz indoeuropeia.
O termo Pomerânia vem do idioma wende: Po Morjsce, no caso “Terra junto ao Mar”. Mais tarde o Vaticano, em seus mapas sobre a região, latinizou o nome, batizando de Pomerânia. Os pomeranos-wendes chegaram à margem sul do Mar Báltico por volta do ano 600 d.C. Daí em diante foram objeto da cobiça de vizinhos por suas férteis terras e também pelo fato de serem politeístas, animistas e polígamos, o que levou exércitos de soldados e prelados a buscarem sua conversão ao cristianismo.
Quando isso ocorreu, os duques pomeranos convidaram germânicos de toda a atual Alemanha (pois ainda não havia Alemanha como a conhecemos, ela foi criada em 1871 por obra de Bismarck,; até então o que havia eram dezenas de ducados, principados, cidades-estados etc.) para colonizarem terras da Pomerânia, visto que havia maior adiantamento tecnológico desses estados germânicos, como o arado de ferro e a abundância de sal, fator importante para um povo pescador. Então, houve uma gradual interpenetração étnica entre germânicos e pomeranos wendes, cuja maior diferença, contudo, permaneceu na língua.
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Por fim, o senhor acaba de relançar seu romance O pescador de arenques. Qual a sua expectativa em torno da leitura dele por parte de uma nova geração, que talvez não tenha tido acesso à edição anterior?
O livro O pescador de arenques foi lançado em 2007 e teve uma aceitação muito positiva, não somente aqui, mas no Brasil todo onde se interessam por essa história. A edição se esgotou e há vários anos crescem os pedidos sobre onde encontrar o livro, principalmente de uma geração mais nova. Motivo pelo qual em novembro ele foi reeditado pela editora Pragmatha, de São Paulo. Além disso, em 2022 lancei o romance histórico Noivas de preto, sobre a questão da jus primae noctis.
Minha expectativa é que os mais jovens interessados na cultura pomerana e germânica em geral busquem esses livros, que são uma modesta contribuição para a preservação da memória e da identidade de um dos mais singulares povos da Alemanha e do Brasil.
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