As preocupações com a espiritualidade estiveram na ordem do dia entre as famílias alemãs que emigraram para o Rio Grande do Sul em meados do século 19. Estabelecidos em região cujos habitantes falavam língua diferente da sua, e vindos de área da Europa na qual a religiosidade ocupava lugar central em suas vidas, fossem católicos ou protestantes, luteranos, em seu novo lar logo se ocuparam de construir igrejas, ou ao menos de providenciar locais para a celebração de missas ou cultos.
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Para os católicos que chegaram à Colônia de Santa Cruz a partir de 19 de dezembro de 1849, os padres jesuítas, que passaram a atender a comunidade dez anos depois, em 1859, representaram apoio valioso. Principalmente porque eram, também, da Alemanha, e assim os colonos podiam expressar na língua natal
os seus anseios.
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Um livro organizado por iniciativa do padre Inácio Spohr, com os registros associados à presença jesuítica na cidade, evidencia a enorme contribuição deles para o desenvolvimento regional. Permaneceram à frente da igreja e de outras instituições locais por cem anos, até a criação da Diocese, em 1959.
Um século de contribuição na espiritualidade
Mal os primeiros imigrantes alemães haviam chegado à Alte Pikade, a Picada Velha, atual Linha Santa Cruz, nos primórdios da Colônia Santa Cruz, em 19 de dezembro de 1849, e um contratempo se apresentava para eles, difícil de contornar sem que se mantivessem unidos. Falantes do alemão e vindos da distante Europa, depararam-se com uma região na qual quase ninguém falava a sua língua. Estavam isolados, em lugar ermo, longe da vila de Rio Pardo, de difícil acesso, e além de tudo carentes de atenção espiritual. Isso que em sua terra natal, fossem católicos ou protestantes (luteranos), a religião ocupava lugar central em sua vida.
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Diante da realidade inóspita que agora enfrentavam, mais urgia contar com alguma assistência espiritual, para não sucumbir e desistir diante das adversidades. Em meados do ano seguinte, 1850, houve as primeiras tratativas e mobilizações no sentido de dispor de alguma assistência religiosa. O que o permite compreender é um livro lançado em 2019 por iniciativa do padre Inácio Spohr, de formação jesuítica, o volume 22 da série História das Casas, que propõe um amplo, completo resgate histórico dos jesuítas no Sul do Brasil. Essa obra específica contempla os registros sobre a presença jesuítica em Santa Cruz do Sul.
Natural de Cerro Largo, onde nasceu em 2 de agosto de 1944, padre Inácio Spohr cita que sua mãe era natural de Linha Boa Vista, no interior de Santa Cruz. Aos 12 anos, ele ingressou no Colégio Santo Inácio (Kappesberg), em Salvador do Sul, e em 1964 concluiu o colegial em Florianópolis. No ano seguinte ingressou no Noviciado da Companhia de Jesus, em Pareci Novo. Fez uma série de aperfeiçoamentos, até se dedicar a Teologia no Colégio Cristo Rei, em São Leopoldo, sendo ordenado sacerdote em 1974.
Após atuar em diferentes lugares na região Sul, em 1999 tornou-se secretário regional de língua portuguesa na Cúria Geral dos Jesuítas, em Roma. Depois de dez anos, voltou ao Brasil e cumpriu outras missões. Hoje, aos 79 anos, a partir do Centro de Espiritualidade Cristo Rei (Cecrei), em São Leopoldo, dedica-se a resgatar a história das casas nas quais os jesuítas trabalharam no Sul do Brasil, em consultas ao Arquivo Provincial.
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No livro dedicado à atuação da congregação em Santa Cruz, compartilha crônicas breves (bem como dezenas de fotografias) que atestam a rotina dos padres na região. Ainda em 1850, por exemplo, o imigrante pioneiro August Wutke fizera um primeiro esforço para conseguir um clérigo alemão para a colônia. Veio um padre secular, João Meinolph Traube, que abandonou as famílias após nove meses, pela dificuldade da língua. Wutke insistiu que viesse atendê-los um padre jesuíta de Dois Irmãos. Ocorre que já em 1849, mesmo ano da vinda dos primeiros colonos a Santa Cruz, missionários jesuítas vindos da Alemanha passaram a administrar a Paróquia de Dois Irmãos, no Vale do Rio dos Sinos, e a paróquia de São José do Hortênsio, no Vale do Rio Caí, onde estavam fixadas famílias que chegaram àquelas regiões a partir de 1824.
Em Santa Cruz, ainda em 1851, o governo imperial havia se determinado a construir uma capela, sob responsabilidade de Guilherme Lewis e que só foi inaugurada em 1863, com São João Batista como patrono. Em 1860, o padre Miguel Kellner veio de Hortênsio pela primeira vez a Santa Cruz, ficando por dez dias. Depois finalmente tomou posse o primeiro pároco jesuíta, padre José Stüer. Ele morava no local e atendia sozinho os paroquianos, até, em 1868, receber a companhia de outro sacerdote e de um irmão coadjutor. Ao longo de cem anos, entre 1859 e 1959, a paróquia ficou aos cuidados de jesuítas, por seis décadas missionários vindos da Alemanha, e depois por jesuítas nascidos e formados na terra.
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Meio século após a fundação a paróquia tinha 3.500 famílias, num total de 17 mil habitantes. Além da matriz, eram 25 estações (capelas), que aumentaram para 40 em 1930. Nos cem anos de presença jesuítica, 120 religiosos se engajaram, dos quais 88 sacerdotes. Alguns ficaram por longo tempo. A atuação dos jesuítas permaneceu intensa até 1959, quando foi criada a Diocese, assumindo o primeiro bispo, um sacerdote nascido na localidade, dom Alberto Etges.
Entrevista
- Magazine – Que fatos na avaliação do senhor são mais relevantes na atuação dos jesuítas em Santa Cruz do Sul?
Para começo de conversa, dediquei-me ao trabalho de resgate histórico dos jesuítas no Sul do Brasil por livre iniciativa, e sempre recebi o apoio dos meus superiores e colegas, o que agradeço de coração. Como exerci o cargo de secretário do Padre Provincial por vários anos, senti necessidade de partilhar algo sobre a vida dos jesuítas falecidos e as notícias das casas onde eles atuaram.
O Arquivo Provincial conserva inúmeras cartas, documentos, fotografias, diários e outros escritos, mas é um material desconhecido para a maioria das pessoas. Resolvi fazer o trabalho de formiguinha e socializar o que achei significativo. Confesso que encontro um sabor especial nesses escritos, porque falam da vida de tantos companheiros jesuítas (padres, irmãos e escolásticos) que se dedicaram de corpo e alma pelo bem do povo em situações que parecem ser impossíveis.
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Ao conhecer cartas e diários que os antigos missionários deixaram no decorrer dos cem anos de atuação em Santa Cruz e na região, de 1861 a 1960, só resta agradecer a Deus por tudo que realizaram. Entre outras obras, destaco a construção da igreja matriz, hoje catedral de Santa Cruz. Quanto sacrifício para erguer os muros e as torres da igreja (82 metros de altura), quantas festas populares que os jesuítas organizaram para conseguir fundos, quantos anos de amor e serviço que se transformaram em obras e edificações! Devemos ser gratos como Companhia de Jesus – jesuítas – por termos a possibilidade de, em grande parte, evangelizar e até ajudar na fundação de algumas cidades como as conhecemos hoje no Rio Grande do Sul, por exemplo, Cerro Largo.
- Que legado os jesuítas deixaram mesmo após terem deixado de atuar na cidade (com a criação da Diocese, em 1959)?
Um dos ministérios que os jesuítas sempre exerceram foi a formação de famílias para que cultivassem valores verdadeiramente cristãos, fossem de prática religiosa e fossem fermento de transformação da sociedade. Em vista disso, os sacerdotes e irmãos se empenharam muito na catequese de crianças e jovens, na pregação dos sermões e outros meios de comunicação. Ao longo dos anos, sempre visitavam os doentes (muitas vezes percorreram horas a cavalo para sacramentar algum enfermo), atenderam as confissões, serviram os pobres etc.
A educação de crianças e jovens esteve presente na fundação de escolas elementares. Para levar em frente tal apostolado, contaram com a presença das Irmãs Franciscanas e dos Irmãos Maristas. Os jesuítas empenharam-se na formação de novas paróquias na região, promoveram vocações para o sacerdócio e a vida religiosa, fundaram Congregações Marianas e o Apostolado da Oração.
De fato, essa imensa paróquia de Santa Cruz forneceu várias dezenas de sacerdotes para a Igreja, sem falar das vocações religiosas masculinas e femininas. E, ainda hoje, atuamos e buscamos animar vocações missionárias à Igreja e à Companhia, como religiosos consagrados por meio do nosso serviço de pastoral vocacional.
- Que marcas costumam ser as mais centrais na atuação jesuítica?
O apostolado dos Exercícios Espirituais, comumente chamado “retiro de Santo Inácio”, é uma marca dos jesuítas ao longo dos séculos. Como tais Exercícios podem ser feitos de diversas formas, não foram esquecidos na paróquia de Santa Cruz. Várias turmas de rapazes e moças fizeram o retiro de três ou mais dias. A oferta de retiros espirituais continua como um forte e frutuoso apostolado dos jesuítas. Essa é uma experiência que todos estão convidados a viver ainda hoje como um tempo de recolhimento e encontro de propósito de vida em nossos Centros de Espiritualidade, presentes em todo o Brasil, como o Cecrei, em São Leopoldo, inclusive.
De vez em quando pregaram-se as missões populares nas comunidades, tendo como tema as principais verdades da fé cristã. Os Exercícios também permearam as pregações da semana santa, os tríduos de preparação às principais festas, as congregações marianas. Para tal, enquanto os jesuítas estavam em Santa Cruz, tendo em vista um lugar apropriado de recolhimento, foi construída a Casa de Retiros Loyola, nos arredores da cidade, na década de 1950.
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- O senhor pessoalmente teve vínculo, profissional ou pessoal com Santa Cruz? Como ocorreu essa relação em sua trajetória?
Em primeiro lugar, a minha mãe era natural da Linha Boa Vista, Santa Cruz. Conforme o livro de batismos, foi registrada na Paróquia São João Batista, em 1905. Quando ela tinha 6 anos de idade, a família se mudou para a Colônia Serro Azul (hoje Cerro Largo), sendo o trajeto de 350 quilômetros feito de carroça, puxada a cavalo. Foi um sacrifício e tanto, feito por necessidade de sobrevivência. Da minha parte, no tempo do noviciado – momento em que se vive experiências fundantes da vocação inaciana e jesuíta –, pude fazer um experimento apostólico no Hospital Santa Cruz. Fiquei um mês atendendo e acompanhando os doentes para ter contato mais próximo com Cristo padecente nas pessoas.
Lembro-me que naquela época, em 1966, a catedral ainda não estava rebocada no lado leste. No tempo da teologia, em São Leopoldo, fiz um retiro de oito dias na Casa de Retiros Loyola, em Santa Cruz. Foram dias muito frios e de intensa oração pessoal. Sempre que passo nesta cidade hospitaleira, lembro a presença de tantos jesuítas que colocaram as bases para a florescente paróquia e, hoje, sede diocesana. Aliás, é bom ter presente que são três as sedes diocesanas que eram paróquias jesuítas: Santa Cruz, Novo Hamburgo e Montenegro.
- Com as demais Casas no interior gaúcho, como foi a interlocução de Santa Cruz e de seus padres e dirigentes ao longo do tempo?
A Paróquia São João Batista, de Santa Cruz, foi assumida pelos jesuítas alemães, em 1863, em substituição dos padres seculares – diocesanos. O que chama a atenção é que o jesuíta P. Miguel Kellner, SJ, ia anualmente, desde São José do Hortênsio até Santa Cruz, a fim de atender os colonos alemães. Eram 140 quilômetros que o missionário precisava percorrer, no lombo do cavalo, no meio de matas, montanhas, vales e rios até chegar ao destino. E como o padre era esperado pelo povo! Pois fazia 12 anos que os colonos não ouviam mais a Palavra de Deus em alemão.
O primeiro pároco jesuíta, P. José Stuer, SJ, teve uma vida nada fácil, pois morava numa casa pobre, úmida, infestada de ratos, morcegos, corujas; ficou muito doente e quase morreu, mas recuperou-se. Assim era a vida doada e abnegada de tantas pessoas que o Cristo chamava e chama a Si. Os exemplos deles em seu amor a Jesus Cristo devem nos animar a doar também a nossa vida, não acham? E sempre havia a caridade do povo em ajudar os jesuítas missionários nos afazeres domésticos.
Ao longo dos anos, como a paróquia era imensa e a população aumentava sempre mais, os Superiores da Companhia destinaram sempre mais padres e irmãos para fazerem a “cura de almas” em Santa Cruz. Com o tempo, muitas comunidades se tornaram novas paróquias, desmembradas de Santa Cruz (para citar algumas: Venâncio Aires, Vera Cruz, Candelária, Monte Alverne, Agudo, Santo Amaro…).
Como de costume na Companhia de Jesus, cada jesuíta fica algum tempo numa casa e, após alguns anos, recebe transferência para outro lugar. Assim se explica que, no decorrer dos quase cem anos de missão em Santa Cruz, cerca de 130 jesuítas atuaram na paróquia e em outras frentes, como no hospital, casa de retiros, escola. Vários deles faleceram em Santa Cruz.
Com respeito aos Jesuítas Irmãos, eles se dedicavam em administrar os trabalhos domésticos, atuando nos afazeres da cozinha, no cuidado das hortas e pomares da comunidade. Também cabia aos Jesuítas Irmãos dar catequese ou lecionar na escola elementar. Alguns ainda se destacam como construtores de altares, professores primários ou organistas. O Ir. João Immler, SJ, que trabalhou muitos anos em Santa Cruz, encantava as crianças pobres com seu violino.
- Muitos jesuítas que vieram para a região eram oriundos da área que formou a Alemanha em 1871. O que isso representou para os colonos, naquela época?
Até 1871 já haviam chegado cerca de 30 jesuítas europeus, a maior parte alemães, que trabalhavam em diversas frentes na então Província de São Pedro do Rio Grande (atual Rio Grande do Sul). Eles trabalhavam nas paróquias de São José do Hortênsio, São Sebastião do Caí, São Leopoldo, Santa Cruz, no Colégio Conceição de São Leopoldo, na missão de Nonoai junto aos indígenas e, na residência de Porto Alegre, atendiam em capelanias e ainda atuamos na Comunidade São José (dos alemães).
Os jesuítas que vieram a partir de 1871 não só reforçaram o que estava em funcionamento, mas abriram novas frentes apostólicas, como a fundação de paróquias, a abertura de novos colégios (Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande), seminários menores e maiores (Pareci Novo, Porto Alegre, São Leopoldo, Santa Maria, Gravataí, Cerro Largo, Salvador do Sul), a fundação do cooperativismo no Brasil pelo padre Theodor Amstad, SJ (Caixa Rural, hoje Sicredi), os congressos católicos, as Congregações Marianas, o Apostolado da Oração, a publicação de revistas, as casas de retiro, a fundação de novas colônias (Cerro Largo, Santo Cristo, Itapiranga), o trabalho científico (história, arqueologia, ciências naturais etc.). Quanto à população atingida pelos jesuítas, não foram apenas os alemães, mas também italianos, poloneses e lusos.
Vários bispos pediram a presença de um ou dois jesuítas nas visitas pastorais para que preparassem o povo com instruções catequéticas e confissões e fizessem a tradução ao alemão, quando o bispo dominava apenas o português. Tais visitas eram feitas a cavalo ou de carroça, e demoravam vários meses para percorrer as grandes paróquias do RS.
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- O senhor teve passagem profissional por Roma. Como e qual é, hoje, a contribuição dos jesuítas no seio da Igreja católica?
Estive por quase dez anos em Roma, de 1999 a 2009, durante os quais me dediquei a trabalhos de secretaria na Cúria Geral dos Jesuítas e no Colégio Pio Brasileiro, à época confiado aos Jesuítas. Gostava de fazer o trajeto a pé, diariamente, desde a Cúria até o Colégio, cerca de 3 km. Sou muito grato pela experiência e contatos que tive com as diversas realidades que dizem respeito à Igreja e à Companhia de Jesus.
Roma é uma cidade cosmopolita, pois acolhe gente de todos os cantos do mundo. Desde longa data os jesuítas estão muito presentes em organismos da Igreja (Secretarias de Estado), na formação do clero (Universidade Gregoriana, Instituto Bíblico, Colégio Germânico, Colégio Oriental etc.), no campo científico (Specula Vaticana – Observatório Astronômico) e social (migrantes, serviço aos refugiados), na comunicação (Rádio Vaticana).
Francisco, o primeiro Papa jesuíta na história da Igreja, conta sempre conosco, seus companheiros de Ordem e carisma, como apoiadores e assessores formais e informais quanto aos discernimentos para guiar a Igreja em saída para as periferias sociais e existenciais do mundo. Anualmente, ele celebra conosco o dia de nosso fundador, Santo Inácio de Loyola, em 31 de julho; nessa ocasião, é sempre recebido com festa. Ele é um papa que sabe precisamente qual é o peso e a missão de ser um líder mundial no tempo caótico e dilacerado em que vivemos.
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