Duas semanas após a diretoria colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovar um relatório técnico que recomenda a manutenção da proibição dos produtos eletrônicos de tabaco no Brasil, a ex-diretora do órgão Alessandra Bastos, que defende a regulamentação dos dispositivos, disse, em entrevista à Rádio Gazeta, que ainda é possível reverter a decisão. Alessandra ressaltou que, caso isso não aconteça, os impactos sobre a saúde pública serão muito graves em função da expansão desenfreada do consumo pela via do contrabando.
Farmacêutica, Alessandra foi diretora de medicamentos e alimentos da Anvisa de 2018 a 2020 e atualmente trabalha como consultora da BAT Brasil. Para ela, é fundamental que, diante da atual situação, que define como “uma crise sanitária de extensões inimagináveis”, a Anvisa defina regras claras para a comercialização dos chamados Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs), que incluem cigarros eletrônicos e produtos de tabaco aquecido. “Nós temos que ter controle sobre onde o produto será vendido e quem tem autorização para vender. Hoje, vemos esse produto sendo vendido de forma indiscriminada na internet e entregue em casa. Isso, sim, é lamentável e causa uma avalanche de problemas”, disse.
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Os DEFs são proibidos desde 2009 por uma resolução da Anvisa. Em 2018, porém, o órgão reabriu a discussão sobre o assunto. Os produtos, que incluem cigarros eletrônicos e tabaco aquecido, são defendidos pelas empresas do setor como alternativas menos danosas à saúde do que os cigarros convencionais, pois dispensam a combustão na utilização. Estudos indicam que é justamente na queima do tabaco que a maior parte dos componentes tóxicos do cigarro são liberados. Em países como Inglaterra, os dispositivos são utilizados em serviços públicos de saúde como estratégia para reduzir o tabagismo.
A decisão da diretoria colegiada saiu no dia 6 de julho. O relatório, que foi aprovado por unanimidade, conclui que não há evidências científicas de que esses produtos, já regulamentados em mais de 70 países, são menos nocivos à saúde do que os cigarros tradicionais. Na prática, porém, a discussão ainda não foi encerrada, pois será elaborada uma nova resolução para substituir a de 2009. Para isso, deve ser realizada outra consulta pública.
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Entrevista – Alessandra Bastos, ex-diretora da Anvisa
- Vocês acreditam que ainda é possível reverter a decisão da diretoria colegiada da Anvisa?
Sim, pois o rito regulatório segue. O que estamos vivendo é uma crise sanitária de extensões inimagináveis. E a Anvisa, vestindo a camisa da sua responsabilidade, que é regulamentar todos os produtos sujeitos a vigilância sanitária, deve definir uma norma criteriosa ditando como esses itens podem ser fabricados, quais produtos eletrônicos poderão circular, quais substâncias poderão ser misturadas e ofertadas, qual público poderá ter acesso a esse tipo de produto e onde poderá ser vendido. Quando você tem a regra, você tem o controle. E é isso que aguardamos da nossa Anvisa. - Qual o risco em se manter a ausência de regulação, considerando o crescente consumo do produto pela via do contrabando?
Quando falamos de um produto ilegal, seja fruto do contrabando ou fabricado sem qualquer fiscalização sanitária, é inimaginável o estrago. O cenário posto é que 100% dos cigarros eletrônicos consumidos no Brasil são ilegais. Isso é muito grave. É um risco que não conseguimos sequer calcular. Quais as substâncias que estão sendo misturadas? Não sabemos. Em que condições esses dispositivos são fabricados?
Vimos casos de explosões, vimos casos de internações de pessoas, mas por quê? Porque o risco que se oferta em um produto ilegal é incomensurável. Não se sabe sequer o que está sendo oferecido. E, em uma situação dessas, recorre-se a quem? Não há quem responsabilizar.
Hoje, quando chega um paciente alegando que consumiu cigarro eletrônico, não se sabe sequer o que ele inalou. Isso é muito crítico. Nos países onde houve implantação de uma regra criteriosa, eles passam a ser dispositivos de risco reduzido. Quando você oferta um produto dentro da legalidade, você sabe o que tem ali. Se o produto legalizado não é isento de risco, o produto ilegal tem todos os riscos. - Quer dizer, como não há um regramento, na prática nem se sabe o que está sendo consumido hoje?
Antes da regulamentação nos Estados Unidos, nós tivemos a crise da evali (síndrome respiratória aguda causada pelo uso de cigarro eletrônico). Foi uma lástima mesmo, jovens morreram, mas porque estavam inalando substâncias que foram adulteradas e introduzidas de forma ilegal no dispositivo. O que vai solucionar, criar um novo entendimento sobre o tema, é a regra clara. O jovem não tem que ter acesso ao cigarro eletrônico. Nós precisamos ter controle sobre onde o produto será vendido e quem tem autorização para vender. Hoje, vemos esse produto sendo vendido de forma indiscriminada na internet e entregue em casa. Isso, sim, é lamentável e causa uma avalanche de problemas. Com uma regra vinda da Anvisa, esperamos reverter minimamente esse quadro. - A senhora acredita, então, que a proibição imposta pela Anvisa em 2009 não funcionou?
Essa proibição não cumpriu o seu propósito. Na época, nós até entendemos que, pela lei da precaução, a Anvisa não quis regulamentar. Alegou-se falta de informações sobre o produto. Mas isso não é verdade hoje. O que observamos é que mais de 80 países têm regras para esses dispositivos. E nesses lugares os produtos são usados contra os malefícios do cigarro convencional. É fato que há dados mais do que suficientes para uma tomada de decisão da Anvisa. Há dados que apontam que esses produtos não são inócuos, não são sem riscos, mas apresentam, sim, menos risco do que o cigarro convencional. Quando pensamos no longo prazo, quanto isso vai custar para a saúde pública?
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