O Google decidiu recorrer da decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que o obriga a fornecer dados de milhares de usuários do site de buscas no âmbito da investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Em recurso enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF) a empresa alega que a decisão cria risco à privacidade e viola direitos fundamentais protegidos pela Constituição.
Especialistas ouvidos pelo Jornal Estado de S. Paulo explicaram que, se prevalecer a decisão do STJ, a divulgação indiscriminada de dados pessoais de indivíduos que sequer são alvo de investigação criaria uma jurisprudência perigosa. Seria aberto um precedente para que em qualquer investigação seja pedida a quebra de sigilo de cidadãos, criando o que chamaram de um Estado policial de vigilância.
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“Não podemos receber isso com naturalidade; é um perigo”, avalia o advogado Lucas Mourão, especialista em Direito Civil, pós-graduando em direito digital pelo ITS/UERJ. “Isso abre margem para um estado policial constante, especialmente no contexto político que estamos vivendo.”
O advogado comparou a uma escuta telefônica genérica. “Seria como grampear o telefone de todas as pessoas para descobrir um suspeito”, disse. “É muito diferente de quando já existe um suspeito, uma linha de investigação, um pedido específico de quebra de sigilo. Isso já aconteceu outras vezes no próprio caso Marielle e também no caso Flordelis.”
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No fim de agosto, a pedido do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), o STJ determinou que o Google fornecesse, entre outras informações, todos os dados de geolocalização dos usuários que estavam nos arredores do local onde o carro dos atiradores foi visto pela última vez no dia do crime, em 2 de dezembro de 2018.
Além disso, foram solicitados acessos a todas as buscas de sete palavras-chave, “Marielle Franco”, “vereadora Marielle”, “agenda Marielle”, “agenda vereadora Marielle”, “Casa das Pretas”, “Rua dos Inválidos, 122” e “Rua dos Inválidos”, por quaisquer usuários durante os cinco dias que antecederam o crime.
Cada usuário atingido pela medida seria identificado pelo seu IP, sigla em inglês para protocolo de internet – uma espécie de impressão digital dos usuários da rede. Para fornecer todos esses dados ao MP-RJ, no entanto, seria necessário violar a privacidade de milhões de usuários que não têm nenhuma relação com o crime, mas poderiam ter feito tais pesquisas ou estar nas imediações do local onde o carro dos criminosos foi visto pela última vez.
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“As pessoas têm o direito de ir e vir”, frisou o advogado Francisco Brito Cruz, diretor do centro de direito digital Internetlab e doutorando em Direito na USP. “As pessoas podem pesquisar o que quiserem na internet, isso não torna ninguém suspeito de um crime.”
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Durante o julgamento no STJ, o advogado Eduardo Mendonça, que representou o Google, lembrou que a empresa colaborou no caso Marielle, fornecendo “dados específicos de mais de 400 pessoas e dados de conteúdos específicos de mais de 30 usuários” suspeitos de envolvimento. No entanto, argumentou, os outros dois pedidos eram desproporcionais.
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O MP-RJ alega que há, sim, proporcionalidade, uma vez que os investigadores não conseguiram ainda elementos para determinar a autoria intelectual do crime. E há uma necessidade efetiva e interesse público na resolução do caso. Além disso, diz, não haveria prejuízo à privacidade individual, uma vez que apenas os números de IP seriam informados.
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“É óbvio que esse crime precisa ser esclarecido o quanto antes; e é claro que o suporte tecnológico é necessário para a investigação avançar”, ressaltou Lucas Mourão. “Mas não dessa forma tão genérica. O método usado para que o crime seja esclarecido também é importante, não podemos criar um estado policial constante.”
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Em nota oficial, o Google afirmou que, ao recorrer da decisão, “reforça sua preocupação sobre o grave risco à privacidade dos brasileiros decorrente de ordens de quebra de sigilo genéricas e não individualizadas, direcionadas a usuários que não são suspeitos ou mesmo investigados”.
Diz ainda: “O Google reitera seu respeito pelas autoridades brasileiras e seu compromisso em colaborar em investigações, nos limites da lei. Por isso mesmo, não poderia deixar de submeter ao Supremo Tribunal Federal a apreciação do que entende ser uma violação aos direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados pessoais, bem como ao devido processo legal”.
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Questão mais ampla
Para os especialistas, a discussão vai muito além da eventual resolução do crime. “Um precedente de uma alta corte pode tornar comum no Brasil que autoridades investigativas comecem a requerer quebras de sigilo cada vez mais genéricas; e aí a questão é: o que acontece com esses dados uma vez encaminhados à polícia e ao MP? Os dados daqueles que não têm nada a ver com o crime são descartados?”, indaga o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS) e professor de Direito da UERJ, Carlos Affonso Souza.
Os Estados Unidos estão adotando uma prática que poderia ser vista como caminho do meio. Os investigadores podem pedir os dados genéricos de determinada área em um período de tempo. O Google reúne as informações dos dispositivos que estavam no local, mas dá a cada um identificação anônima. Somente depois que se restringe o número potencial de envolvidos, o Google fornece as identificações detalhadas.
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