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As três semanas de exílio de Belchior em Murta

Prestes a se abrir a pré-venda de livro que narra a trajetória nômade de um dos maiores ídolos da música popular brasileira, a Gazeta do Sul foi até a distante Murta, localidade do interior de Passa Sete, no Centro-Serra, para contar um capítulo da passagem de Belchior pela região. Em uma propriedade rural que no passado serviu como ponto de comercialização de feijão e tabaco, o rapaz latino-americano sem dinheiro no banco e parentes importantes viveu durante três semanas, entre novembro e dezembro de 2016, meses antes de morrer em Santa Cruz do Sul.

Com um violão emprestado pelo dono da casa, hortaliças e peixes oferecidos pelo caseiro, Belchior e Edna passaram aqueles dias na companhia de pássaros, da cachorra Mel e dos gritos das crianças de uma escola pública, vizinha à propriedade. Sem falar muito, tocando violão e “escrevendo” o tempo todo, o compositor é lembrado como alguém quieto, de hábitos discretos, que se contentava com o simples. A propriedade de Murta foi um dos endereços de Belchior, que sabia que viver é melhor que sonhar.

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Com Ingrid, fã e anfitriã de Belchior na propriedade

A longa viagem para o refúgio perfeito
O casal Ubiratan (Bira) e Ingrid Trindade estava com um problema dentro de casa. O mês era novembro do ano de 2016 e um hóspede impedia que eles recebessem qualquer tipo de visita. Incluídos no roteiro secreto criado para abrigar Belchior e sua companheira Edna, em Santa Cruz do Sul, Bira e Ingrid decidiram levar o compositor cearense ao interior de Passa Sete. A propriedade da família, localizada na longínqua Murta, acabou sendo o refúgio para uma experiência natural de Belchior com a região.

Isolados, ele e Edna viveram três semanas, entre os meses de novembro e dezembro daquele ano, no recanto, que só deixou de ser “seguro” quando mais membros da família Trindade souberam que o ilustre hóspede preferia o anonimato. “Nós não podíamos receber ninguém. Aí lembramos da propriedade de Murta, e ele se interessou em conhecer”, diz Bira. Essa foi a senha para levar o casal à região serrana. Murta é o nome de uma planta que sobrevive às altas temperaturas, presente na flora de Passa Sete. “Tinha relação com passagens da Bíblia. Ele mesmo disse isso”, recorda o anfitrião.

Para chegar até lá, é preciso encarar uma viagem de quase 100 quilômetros, saindo do centro de Santa Cruz do Sul. A estreita ERS-400 e a “curva das cobras” são desafios à perícia do motorista. A localidade se descortina após o percurso por uma estrada de terra. Em Murta, até mesmo a chegada do ônibus, vindo da cidade, é um evento. Quem desce do coletivo pega carona para outros destinos do interior de Passa Sete. Murta é um arbusto que resiste ao clima, comum na geografia da região Centro-Serra. Na Bíblia, essa planta é citada pelo profeta Zacarias, no livro do Apocalipse. Ela tem raízes muito profundas, que dão condições à vida em situações extremas, e é comparada à fé em Deus no texto que narra o fim dos tempos.

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A permanência de Belchior na região não foi como a fixação da murta. No período em que viveu quase como nômade, teve raízes aéreas, sem se prender aos locais nos quais passou seus últimos momentos. “Eles iriam ficar apenas um fim de semana na propriedade. Quando viemos buscá-los, fizeram questão de ficar em Murta. Nem mantimentos havia, mas eles não se importavam”, conta Ingrid.

Murta virou o esconderijo perfeito para o casal. Edna e Belchior não abriam sequer a janela ou a porta da frente do casarão restaurado. Não saíam muito pela área de 14 hectares, parte usada no plantio de soja, parte dedicada à preservação. “Eles passavam a maior parte do tempo reclusos, dentro da casa ou do quarto”, comenta Ingrid.

No período de três semanas, um evento em família na propriedade fez com que o casal tivesse de ser levado para Sobradinho, na casa de outro familiar de Bira. “Tinha de ser assim. Toda vez que alguém vinha para algum lugar, tínhamos de escondê-los de novo”, frisa Bira. Como agradecimento, Belchior deixou um autógrafo na parede do irmão de Bira, em Sobradinho. Assim viviam ele e Edna, de ajuda e gratidão, o tempo todo.

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Bira com o ídolo, em momento de descontração

Os pássaros, a cachorra Mel e as crianças da escola
Na estadia em Murta, Belchior parecia feliz, porém lacônico e inquieto. Desenvolveu uma técnica de comunicar-se com a natureza sem falar nada. “Ele repetia o canto dos pássaros. Era até bonito de se ouvir”, revela José Cremonese, o caseiro Chico.

Chico não tem Francisco no nome, mas carrega esse apelido desde criança. Nasceu e cresceu em Murta, mesmo local onde aprendeu a gostar de Belchior, pelas ondas do rádio. “A gente não tinha televisão naquela época. Talvez por isso eu nunca o reconheci. Ele jamais cantou enquanto estava aqui. Tocava violão, e era lindo de ouvir. Ele tocava e escrevia, de manhã, quando saía para tomar um sol; imitava os pássaros, e só”, descreve o caseiro.

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No período em que Belchior esteve recluso na propriedade, Chico interagiu diretamente com ele uma única vez, para resolver um problema na cozinha, mas nem ali o reconheceu. “Disseram para mim que era um professor do Ceará que estava passando uns dias aqui”, confirma Chico, que não se atreveu a questionar os patrões. Após a saída do casal famoso, ele foi informado de que o hóspede a quem servira naqueles dias era o “rapaz latino-americano”. O mesmo que tinha certeza de que viver era melhor que sonhar.

Chico tinha duas coisas que agradaram muito ao hóspede importante. A cachorra Mel, uma labradora que rapidamente conquistou a simpatia de Belchior, e as hortaliças plantadas na casa do caseiro, vizinha à propriedade. “Eu trazia alface para eles; ele agradecia muito. Uma vez trouxe um peixe inteiro, uma carpa-capim, e eles me agradeceram muito. Depois, fiquei sabendo que ele gostava muito de peixe.”

A cachorra Mel não está mais em Murta. Vítima de um câncer no útero, morreu em agosto do ano passado. “Ela também gostava dele”, enfatiza Chico, que faz silêncio em seguida.

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Os vizinhos da Escola Municipal Carmen Lisboa Trindade nos intervalos de aula enchiam de vida os pátios, e a algazarra ecoava na propriedade. “Ele ficava escutando os gritos das crianças e dizia que o ruído combinava com o canto dos pássaros. Ele chegou a pedir se poderia, um dia, gravar um videoclipe aqui. Na hora eu não entendi muito bem”, recorda Ingrid.

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Chico e as hortaliças de que Belchior e Edna gostavam

Aquilo que ninguém jamais saberá
Belchior passava o tempo todo escrevendo, desenhando e tirando notas do violão emprestado por Bira. “Acho que ele estava preparando algum material inédito. Ele queria voltar, dizia que na próxima turnê nós seríamos convidados dele”, conta. Nos planos de Belchior, as apresentações se iniciariam pelo México, para onde ele levaria o casal Trindade, seu anfitrião em Santa Cruz e em Murta.

O fato de não desgrudar de violão, desenhos e anotações também sugere que o compositor passava os dias a trabalhar em algo talvez ainda mais secreto do que seu próprio paradeiro nas terras da região.

De hábitos simples e discretos, Belchior era curioso por demais. “Tudo ele queria saber, sobre as árvores, pássaros. A natureza daqui instigava a curiosidade dele, diferente da maioria das pessoas, que não se interessa por isso”, afirma Bira.

À mesa, o artista também era contido. Nunca bebia mais do que dois cálices de vinho, bebida preferida, mas na medida. Vestia-se com camisas e jeans simples, alguns pintados por ele mesmo, como a “velha roupa colorida”, imortalizada na voz de Elis Regina.

“É muito difícil julgar pela aparência, poderia ser que ele tinha depressão; no entanto, ele não demonstrava fragilidade”, diz o dono da casa, que conheceu Belchior nos anos de 1990, e desde então nutria admiração cada vez maior pelo artista.

Se havia um novo disco, obras de arte, um livro (ou até mesmo um conjunto de produtos culturais) em desenvolvimento, em sua passagem pela região, somente Belchior poderia revelar. “Eu fiquei incrédula quando soube que ele tinha morrido, naquele dia, em Santa Cruz. A gente esperava que ele fosse retomar a carreira”, lamenta Ingrid.

Viver é melhor que sonhar
Trecho de outro grande sucesso de Elis Regina, composto por Belchior (Como Nossos Pais), é a frase que dá nome ao livro cuja narrativa apresenta a vida errante de Belchior, de 2007 a 2017, quando morreu, anonimamente, em Santa Cruz do Sul.

Viver é melhor que sonhar: os últimos caminhos de Belchior terá sua pré-venda a partir de segunda-feira. Escrita pelos jornalistas Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti, a obra, ainda sem data para ser lançada, narra a última década de Belchior e suas passagens pela região.

À Rádio Gazeta FM 107,9, Chris disse entender por que Belchior passou tanto tempo em Santa Cruz, escolhendo a cidade como refúgio durante sua última temporada na terra. “A cidade de vocês é linda, organizada. Assim que passar a pandemia, quero visitar Santa Cruz do Sul de novo”, contou a jornalista carioca.

Ao lado de Bortoloti, ela revirou as histórias de Belchior, contadas pelos fãs dele, que na visão dela foram os maiores protetores do artista. “Todo este segredo esteve bem guardado porque os fãs, as pessoas que abrigaram ele, estavam comprometidas com isso. Essa é uma das partes mais lindas nesta história”, classificou.

Sem dar spoiler sobre o livro, Chris explicou que, a partir de segunda-feira, quem é fã pode garantir a obra, fazendo uma reserva do exemplar. Os primeiros livros vendidos terão brindes, como camisetas, CDs e material de colecionador. A reserva pode ser feita pelo site Benfeitoria, utilizado em projetos de financiamento coletivo, como o próprio livro da dupla é. O endereço virtual é www.benfeitoria.com. A ideia é que os exemplares cheguem às livrarias a partir de fevereiro.

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