Os imigrantes alemães, desde que chegaram a Santa Cruz do Sul, em 1849, sempre tiveram um forte senso associativo. A tradição trazida da Europa foi fundamental para o sucesso das colônias no Rio Grande do Sul, haja vista que eles não falavam o português nem tinham dinheiro para contratar trabalhadores para auxiliar nas tarefas das propriedades. Assim que as comunidades se estabeleceram e prosperaram, abriu-se espaço para as atividades de lazer, que eram realizadas no mesmo modelo associativista.
Algumas das entidades mais tradicionais e populares da época eram as sociedades de damas e de cavalheiros, com diferentes finalidades. As mais numerosas eram as de atiradores, mas havia ainda as sociedades de lanceiros, de ulanos e de canto, entre outras. Periodicamente, elas disputavam competições cujas premiações eram entregues em grandes bailes. As quermesses, celebrações realizadas para comemorar as inaugurações das igrejas, faziam parte desse contexto e serviram de inspiração para a Oktoberfest da forma como a conhecemos hoje.
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Quermesses celebravam a inauguração das igrejas e as colheitas
Conforme recorda a professora Maria Luiza Rauber Schuster, coordenadora do Museu do Colégio Mauá, os primeiros imigrantes pouco podiam se dedicar ao lazer, em razão das enormes dificuldades que enfrentaram tão logo chegaram a Santa Cruz. De início, preparar as terras para o cultivo, construir uma moradia e garantir a sobrevivência da família eram as únicas preocupações. Ainda assim, o modelo comunitário nunca foi deixado de lado e a primeira construção de uma colônia era sempre a escola, que, aos domingos, também funcionava como igreja para sediar os cultos.
Conforme o tempo passava e a situação melhorava, a próxima estrutura era sempre a igreja. “A inauguração delas era uma data marcante, e em todos os anos, naquele período, era realizada uma quermesse”, relata. Tratava-se de uma festa com duração de vários dias, onde todos da colônia se reuniam, animais eram carneados para servir de alimento aos festeiros e as famílias preparavam bolachas e outros produtos para compartilhar. “Havia ainda um baile, quando as mulheres usavam os vestidos novos.”
Outras fontes citam os famosos kerbs como termos mais amplos mas que também representavam festividade. Um dos motivos apontados é o encerramento da colheita nas colônias, momento em que os colonos se reuniam para celebrar os bons resultados das lavouras e confraternizar com os vizinhos. O formato, contudo, era o mesmo: começava com um culto pela manhã e o evento prosseguia durante o dia com competições esportivas e um baile, que podia durar vários dias. Devido à inexistência de meios de comunicação na época, esses encontros serviam ainda para negociações e pedidos de auxílio entre eles.
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Encontros de sociedades: uma tradição que persiste
Outra grande festividade realizada periodicamente nas comunidades de imigrantes alemães eram os encontros de sociedades. Criadas com fins de lazer e de confraternização entre os colonos, essas entidades podiam ser de atiradores, de lanceiros, de ulanos (cavaleiros), de damas e de canto, entre outras. “Naquela época não existia DJ, os músicos geralmente se agrupavam e tocavam juntos música acústica. Não havia volume em exagero e a festa fluía”, afirma a professora Maria Luiza.
As disputas esportivas culminavam em um baile, onde as premiações eram entregues aos vencedores. “Havia toda uma cerimônia, com desfile de bandeiras e as medalhas, que eram dispostas em almofadas especiais carregadas por moças.” Os premiados costumavam ostentá-las presas aos uniformes ou aos talabartes de couro, que eram usados atravessados no peito. “Alguns tinham tantas que preenchiam a frente e as costas, com prêmios de vários lugares diferentes e anos consecutivos.”
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A pesquisadora acrescenta que eram festas muito especiais e, por isso, aguardadas com ansiedade por toda a comunidade. Além das medalhas, era comum os campeões levarem para casa outros prêmios, como vasos, licoreiras e outros utensílios e enfeites domésticos. “São coisas muito interessantes e que em algumas localidades aqui do nosso interior ainda são mantidas.” Maria Luiza chama a atenção para a necessidade de preservá-las. “Se não fizermos isso, nós vamos acabar perdendo a nossa história”, alerta.
A mais antiga de Santa Cruz do Sul é a Sociedade de Damas Riograndense (Riograndenser Damenschiessklub), fundada em 8 de outubro de 1904. Com 120 anos, permanece em atividade até os dias atuais, ainda que com número reduzido de sócias. “Elas não são mais tantas e nem realizam tantos eventos. Muitas são idosas e, se os jovens não tiverem interesse de participar, a renovação fica comprometida e essa herança vai acabar se perdendo, como já aconteceu em muitos lugares do Rio Grande do Sul.”
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A organização dos bailes respeitava um calendário, de modo que todas as sociedades tivessem a possibilidade de frequentar os eventos das demais. “Era sabido que em determinado mês a sociedade ‘x’ realizava o baile, então todos se preparavam para poder comparecer.” O motivo era a reciprocidade, ou seja, quando chegasse a sua vez, os membros das outras entidades sabiam que aquela anfitriã estaria presente. Por se comunicarem em alemão, muitas sociedades foram proibidas e seus integrantes perseguidos durante a Segunda Guerra Mundial. A situação levou muitas à redução drástica das atividades, ou mesmo à extinção.
Preservação da memória
Anualmente, as sociedades de damas e cavalheiros realizam dois grandes encontros em Santa Cruz do Sul. O primeiro ocorre na Sede Comunitária de Linha Monte Alverne, no âmbito das comemorações do Dia do Colono e do Motorista. Já o segundo, mais recente, é realizado durante a Oktoberfest. Ambos reúnem centenas de pessoas não só de Santa Cruz, mas de outros municípios vizinhos, como Vera Cruz, Sinimbu, Venâncio Aires e Vale do Sol, com um mesmo objetivo: preservar a memória e atrair novos sócios.
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A Oktoberfest não é uma festa de toda a Alemanha
O título pode soar estranho para muitas pessoas, mas é verdade: a Oktoberfest não é uma festa comum a toda a Alemanha, mas apenas ao Estado da Baviera, mais especificamente na capital, Munique. Maria Luiza Rauber Schuster explica que ela foi criada em 1810, para celebrar o casamento do Rei Luís II da Baviera com a princesa Teresa von Sachsen-Hildburghausen. “Os populares fizeram uma festa paralela cujo sucesso foi tanto que quiseram repetir no ano seguinte, e assim se mantém até hoje.”
Sendo assim, a Oktoberfest não é tradicional em toda a Alemanha, apenas no Estado da Baviera. Essa observação, contudo, em nada reduz a importância do evento, que é uma das maiores festas populares do mundo e reúne anualmente mais de 6,5 milhões de pessoas. O consumo do chope também chama a atenção pela quantidade: neste ano, foram comercializados cerca de 7 milhões de litros da bebida mais tradicional do País.
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Por ser uma festividade tão antiga, reúne ainda uma série de curiosidades e peculiaridades. Uma delas é que, apesar do nome, a maior parte da Oktoberfest de Munique ocorre em setembro. Neste ano, por exemplo, foi realizada de 21 de setembro a 6 de outubro. Outro ponto interessante é que apenas as cervejarias de Munique podem servir seus produtos nas tradicionais canecas de 1 litro. São elas: Augustiner, Hacker-Pschorr, Hofbrau, Lowenbrau, Paulaner e Spaten. Há ainda a venda de outras bebidas, como vinhos, licores, destilados e refrigerantes.
Maria Luiza fala ainda sobre o traje. A famosa knicker (calça curta com suspensório) também não é tradicional em toda a Alemanha. Essa impressão foi passada ao mundo pelos americanos depois da Segunda Guerra Mundial, quando, após a divisão da Alemanha, o Sul ficou sob comando dos Estados Unidos. “Eles então venderam para o mundo inteiro que o alemão usava calça curta e vestidinho com avental”, conta. Isso, contudo, não é verdade. Cada região da Alemanha possui trajes típicos diferentes, assim como um estilo próprio de cerveja.
“Se você for olhar os trajes dos grupos de dança, cada um reflete a realidade de um local.” Quanto mais para o Sul, mais coloridos eles são. Os em que as moças usam fitas no cabelo normalmente são tradicionais da região do Tirol, na fronteira com a Áustria. Um dos trajes do grupo de dança Polka, do Centro Cultural 25 de Julho, é inspirado nos usados na região da Silésia, que hoje compõe parte da Alemanha, da Polônia e da República Checa. De lá, saíram alguns dos imigrantes que fundaram a Colônia de Santa Cruz do Sul em 1849.