As variadas atividades artísticas e brincadeiras, seja à moda antiga ou amparadas por celulares, com as quais as crianças se ocupam nestes dias de quarentena, têm funcionado relativamente bem lá em casa. Um grande aliado tem sido o caderno Gazetinha, repleto de atividades elaboradas pelo amigo Gil Kipper e publicado às segundas-feiras na Gazeta do Sul. O período também vem sendo ocupado com pesquisas arqueológicas no fundo dos baús de brinquedos, dos quais as gurias escavam bonecas, acessórios e joguinhos há muito esquecidos.
Com tudo isso, até agora as crianças lá de casa têm enfrentado o confinamento sem maiores queixas, tampouco fazem drama ante a impossibilidade de um passeio. Nos primeiros dias a caçula, Ágatha, até chegou a comentar, em visível tom de brincadeira, que escavaria um túnel para fugir de nossa vigilância, mas depois não tocou mais no assunto. (Por via das dúvidas, porém, mantenho a pá bem chaveada no galpão.)
Mais difícil tem sido, conforme tenho ouvido falar, a situação da moçada com mais de 60 anos, que há muito não vê graça em pinturas a dedo ou casinhas de boneca. Contaram-me de um senhor, morador aqui das redondezas, que escapou à guarda dos filhos e ganhou a rua. Tratou de apressar o passo rumo ao armazém, para retomar o velho hábito do aperitivinho antes do almoço. Porém, deteve-se para cumprimentar, em tom galanteador, um grupo de senhoras da mesma faixa etária, perigosamente aglomeradas em torno de um dedo de prosa.
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– Bom dia, meninas!
Acabou interceptado e reconduzido para casa com a garganta seca.
***
Dias atrás, minha sogra apareceu de supetão lá em casa.
– Só vim conferir se todos estão bem – argumentou, só com a cabeça para o lado de dentro da porta.
– Estamos todos bem – respondeu Ágatha, escondida atrás do sofá, como que resguardada de uma iminente explosão, apenas com os olhinhos de fora, fitando de longe a avó.
– Também trouxe frutas e salgadinhos – insistiu minha sogra, balançando uma sacola. Ágatha, contudo, não mordeu a isca.
– Obrigada, vó. Pode deixar aí, depois eu pego.
E mais tarde, quando voltei da redação, a caçula veio me falar da visita em tom apreensivo. Revelou ter evitado a aproximação a muito custo, temendo o contágio, bastante preocupada com a segurança da avó.
– Na hora da despedida, nem nos abraçamos. Combinamos de, cada uma, dar um abraço em si mesma, fingindo que abraçávamos uma a outra. Me dei um abraço beeeeem forte, quase fiquei sem ar…
E então adotou um ar ainda mais preocupado.
– Pai, já notou que a vó tem rugas? Isso mostra que ela é idosa. Não poderia nem ter saído de casa – e arrematou: – Que perigo, pai. Que perigo…
Minha mãe também andou saindo, sob pretexto de ir à feira. Depois, mandou-me um Whats, avisando que havia comprado algumas verdurinhas para nós também. Quando fui buscar, cheio de dedos e cuidados, confidenciou-me:
– Está muito difícil ficar presa em casa…
E me fui com as sacolas, sem o tradicional beijo de despedida.
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Se, como dizem os sábios, as dificuldades nos tornam pessoas melhores e mais fortes, possivelmente a humanidade estará mais fortalecida ao fim disso tudo. Pelo menos, no que toca às crianças, obrigadas a enfrentar os rigores do confinamento e o medo da doença em tão tenra idade. Talvez desenvolvam, a partir daí, uma vantagem evolutiva em relação a nós, adultos com até 70 ou 75 anos, que crescemos sem ter sentido na pele o terror de uma guerra mundial ou a angústia de uma pandemia.
Sob essa ótica, o coronavírus também veio para mostrar que, por mais que tenhamos passado por uma ou outra crise, por mais que a vida tenha nos apresentado uma série de agruras e desafios pessoais, na verdade vivíamos em uma zona de conforto sem sabê-lo. Agora, sim, é que a coisa está ficando feia pra valer e não bastará agirmos individualmente para salvar só a nossa pele ou apenas o nosso negócio. O momento exige boas ideias, empatia, solidariedade e, principalmente, união de esforços para que, juntos, possamos proteger empresas e empregos e superar a crise – porém, sem abdicar das medidas de saúde tão necessárias para salvar vidas. Teremos que sair dessa antiga zona de conforto – dentro do possível, sem sair de casa.
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