Sempre fui gulosa, desde pequena. Minhas bochechas eram mais, bem mais, redondas do que são hoje, acreditem. Talvez por isso meu apelido quando criança fosse “gorda”. Isso mesmo. Sem qualquer pudor. Gorda. Um apelido nada simpático, como são aqueles que os irmãos insistem em nos dar, por pura maldade infantil. Por muito tempo fui “a gorda”. Só conquistei o direito de ser Letícia quando alcancei a adolescência. Uma prima ainda me chama assim. Por algum tempo, odiei o apelido. Hoje acho até gracioso.
“Gorda” me lembra um tempo bom, com aromas de doces percorrendo a nossa casa simples, de tábuas tortas. As comidas que a mãe preparava para os seus três pequenos devoradores. Me lembra o dia em que eu e minha irmã, Aline, a magricela, até hoje magricela, resolvemos preparar arroz. No fogão a lenha da mãe, nos dedicamos a seguir passo a passo o preparo. Aline sempre foi ansiosa e espevitada. Então, para garantir que ficaria bom, jogou boas colheradas de sal na pequena panela. O resultado foi desastroso, claro.
Enquanto isso, o meu estava perfeito, num reflexo da minha calma infantil. Ao menos eu achei que estava. Aline, na sua crueldade apurada, pegou o saleiro novamente e despejou umas generosas colheradas dentro da minha panela. Assim minha irmãzinha encerrou a nossa primeira aventura na cozinha. Não lembro se chorei, resmunguei. Devo ter reclamado por dias daquilo. E chorado. Porque eu sempre chorava. Mas nunca esqueci da história do arroz. Boa parte das minhas lembranças da infância, por sinal, estão atreladas a comida.
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Lembro dos figos, das rapaduras, do doce de leite, do arroz de leite com pêssego, do doce de pêra e de batata-doce. Das rodas de carreta, que era como a mãe chamava grandes bolos fritos feitos com massa de pão. Dos cafés saboreados sem pressa. Dos salgados também. Sempre amei os salgados. As comidas de verdade. Com sustância. As sopas. Os legumes. E também as carnes. De todos os tipos.
Na chácara em que vivíamos, criava-se porcos, galinhas, codornas, patos. Sempre tive pena dos bichinhos. Mas eu era uma criança gulosa, não resistia à tentação. E lá se iam, em boas garfadas, meus princípios de me recusar a comer os animaizinhos abatidos. É um tanto macabro, eu sei. E respeito demais os que mantêm seus princípios. Mas, enfim, era assim que era.
Foi desse jeito, correndo entre uma horta e um pomar imensos ou disputando as doces rapas da panela, que cresci uma pessoa com amor pela comida. Porque a cozinha tem alma. É feita de gente. Quando há alguns anos fui viver sete meses na Irlanda, descobri que havia uma forma de voltar ao meu chão. A distância se encurtava na cozinha. Nela eu me sentia em casa outra vez. E meus amigos adoravam porque se transportavam ao Brasil em cada garfada. Cozinhar, para mim, é um ato de amor. Por isso resolvi falar disso hoje. Acredito que em tempos tão difíceis, para dizer pouco, precisamos de mais amor. Cozinhemos então. Só mantenham a Aline e seu saleiro longe das minhas panelas, por favor.
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