Scholles transforma o cotidiano em arte na exposição Os Quadros que Falam

Em célebre afirmação, Tolstói diz que, “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Esse parece ter sido o princípio que elevou a obra do pintor gaúcho Flávio Scholles ao renome internacional. Nascido em Morro Reuter, o artista dedicou sua carreira aos temas que o cercavam na região onde cresceu: a colônia, o êxodo rural, a cidade e as origens como descendente de imigrantes alemães. O Vale do Rio dos Sinos foi eternizado em suas telas através de plantios e colheitas, as profissões, e o choque da globalização, entre outros temas, que somam mais de 10 mil telas.

Na exposição aberta sexta-feira, 8, na Casa das Artes Regina Simonis, em Santa Cruz, chamada Os Quadros que Falam, estão reunidos 31 quadros de autoria do artista aclamado internacionalmente e um dos grandes representantes da arte gaúcha na atualidade. A mostra é promovida pela Associação Pró-Cultura, com apoio da Bublitz Galeria de Arte, de Porto Alegre, e fica em exposição até 5 de maio. A visitação é gratuita e pode ser feita de segunda a sexta-feira, das 10 horas às 17h30, e aos sábados, das 10 às 14 horas.

“Estou com 72 anos. Nasci em 15 de fevereiro de 1950, e a cabecinha é nova, mas o corpo já nota que não é mais a mesma coisa”, conta o artista, em contato por telefone. No entanto, Flávio fala com vivacidade sobre sua produção, sobre as inspirações que apreende de seu passado e de sua identidade, explicando sobre a entrada do mítico na arte e como ela se relaciona com suas obras. Nascido em Morro Reuter, o pintor estudou arte na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, e foi o idealizador do movimento de Arte Casa Velha, criado em 1977, em Novo Hamburgo, que tem como objetivo radicar o artista em seu lugar de origem.

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Sua obra foi marcada ao longo dos anos por sua reivindicação da identidade de descendente de imigrantes, com telas que retratam a lida que testemunhou enquanto crescia e já adulto, no Vale do Sinos. Suas referências e inspirações brincam com os vidros coloridos da igreja que frequentava na infância, até a produção rural e as figuras humanas que habitam a região. Hoje, seu ateliê se tornou ponto turístico na Serra Gaúcha, no município de Morro Reuter.

Ele define o período atual como a “pré-história do homem no universo”, relacionando a influência da internet e da tecnologia como divindades e a criação de uma aldeia global interligada. Assim como a invenção da fotografia foi fator de insurreição no mundo da arte, elevando as obras a outro patamar, também foi o estopim que desencadeou o surgimento de outras formas de comunicação. “Em 1826 é inventada a fotografia, que foi a salvação para a arte; a foto em movimento é o cinema, e o cinema popularizado é a tevê. Depois surgem o celular e a internet. Então, a arte do nosso tempo é o design, e quando todo o planeta estiver bonito, vamos começar nossa viagem para o universo”, prevê.

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Reconhecimento

A vasta obra de Flávio Scholles está retratada no livro Quadros que falam, da editora Um Cultural, lançado em 2014, sob a coordenação de Daniel Henz e Ralf Cardoso. Com 488 páginas e produzida em cinco línguas, português, inglês, alemão, russo e mandarim, a publicação é uma verdadeira obra de arte. Sua trajetória também foi transformada em documentário em 2016: Scholles – Sementes de Cor, da diretora Rejane Zilles. O média-metragem, de 28 minutos, mostra o ateliê do artista, suas obras, a influência da região e do contexto histórico em suas criações, e faz uma ponte com o pintor Cândido Portinari, em Brodowski, no interior de São Paulo.

Estamos na pré-história do homem no Universo. Assim, o meu trabalho é uma ‘Literatura de Cordel’, com temática sobre o Vale do Sinos, fazendo uma interferência no planeta Terra, desde 1976, através de uma instalação com milhares de quadros espalhados nas paredes das cavernas contemporâneas – casas e apartamentos – numa tentativa de enfeitar a nossa aldeia global e emitir os primeiros sinais para uma comunicação universal através dos quadros que falam. Sigo todas as tendências de arte desde 1825, o ano seguinte ao da vinda dos imigrantes europeus para a região do Vale do Sinos e no qual acontece o milagre para a arte, a invenção da fotografia. Acabo criando os quadros que falam, que contêm os primeiros sinais para uma nova comunicação no universo, por causa do novo na arte e na cultura: o mítico dos índios. Nas situações de colônia, meu estilo é expressionista. Nas do êxodo, picassiano, por causa da influência do místico negro. Nas situações de cidade, com a vinda dos americanos,
a optical art.”

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Flávio Scholles

Entre pinceladas e histórias

Com uma trajetória singular na vida e na arte, Flávio Scholles é um livro aberto, cheio de boas histórias. Assim como suas telas reúnem uma infinidade de cores e formas geométricas, suas narrativas tratam da vida na colônia e de suas próprias origens. Boa parte de sua obra é uma biografia escrita a pinceladas, onde vivem personagens e cenários de sua juventude. Com produção extensa e reconhecida até fora do Brasil, o artista expõe em Santa Cruz do Sul pela primeira vez. Falando sobre o passado e o futuro da arte e suas profundas significações, ele conversou por telefone com o Magazine.

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ENTREVISTA

O que o senhor pode referir sobre o conceito da exposição Os Quadros que Falam?

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O Nicolas (Bublitz), de Porto Alegre, é um marchand muito conceituado que trabalha com meus quadros há muito tempo. Ele quis fazer esta exposição e precisava de um título; então colocamos “Quadros que Falam”, que diz respeito à entrada do mítico na arte. Em 1906, Picasso era um rapaz de 25 anos e veio uma exposição de máscaras africanas para Paris. Vendo essas máscaras tão simples, mas com tanta energia, ele pensa que a energia desses olhos é o futuro da arte, e assim surge o cubismo. Fui convidado a expor em Trier, a cidade mais antiga da Alemanha, na divisa com Luxemburgo, fundada pelos romanos. Recebi o convite do Centro Português Alemão da universidade onde o Karl Marx lecionava, expus no Tufa, o centro cultural principal de Trier, e veio um casal que pediu que eu explicasse no dialeto aqui da região os 57 quadros que estavam em exposição. Expliquei como deu e no outro dia, no jornal, estava uma matéria de um quarto de página destacando como “quadros que falam”. Essa linguagem não tem como fazer, ela acontece. Eu tenho mais de 8 mil quadros pelo planeta Terra, mas “quadros que falam” são só 14, e o primeiro deles será exposto pela primeira vez.

Qual a expectativa para a mostra?

Faz tempo que eu não estava mais expondo, estive 20 anos com ateliê na Alemanha e cruzei o Atlântico 42 vezes para exposições. Na Páscoa de 2014, parei com a Alemanha e não estava mais expondo em São José do Herval, e muito menos com a pandemia. Eu estou muito feliz de expor neste lado, onde nunca expus; vai ser muito interessante. Eu tenho tantas histórias para contar.

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Muito de sua obra retrata as vivências e a criação como descendente de imigrantes alemães. Sendo Santa Cruz uma cidade que carrega história parecida, como o senhor acha que sua obra será recebida aqui?

As pessoas gostam do meu trabalho. Eu já sou um velho de 72 anos, no começo eu balançava, mas hoje não estou mais tão preocupado. Meu último livro lançado foi concluído nas comemorações dos 200 anos da Imigração Alemã no Brasil, foi lançado pela Lei Rouanet e esgotou. Foi feito pelo Instituto Histórico de São Leopoldo, embasado por 12 professores que tiveram a ideia de dividir meu trabalho em sete partes. O Ministério da Cultura exigiu material em braille, e este é o primeiro livro no mundo com quadros em braille; vou levar um exemplar a Santa Cruz para as pessoas verem. Um professor de história de Berlim disse que meu livro é uma parábola para os milhões de imigrantes no mundo.

Poderia contar um pouco sobre suas inspirações e quanto tempo costuma trabalhar em cada obra?

Antes da pandemia, eu produzia 300 quadros por ano, média de um quadro por dia. Meu quadro mais famoso, o Cristo de Mãos Vazias, eu fiz em 40 minutos e o Sínodo das Igrejas Católicas escolheu como um dos quadros mais bonitos sobre Cristo. Tem também as vezes em que o trabalho demora uma semana, chega ao fim e não deu certo: não aconteceu a alma no quadro. A arte é a linguagem leiga de Deus para com os homens e o artista é a materialização da vibração de um povo. Sou tataraneto de uma princesa francesa e um oficial de Napoleão Bonaparte que fogem para Dois Irmãos. Ficamos cada vez mais pobres e estou numa vila sem luz elétrica, meu pai tinha morrido quando eu tinha 3 anos e a nossa única formação plástica são os vitraux da igrejinha de pedra importados da Alemanha. Queria estudar, mas Getúlio Vargas fechou as escolas da região e proibiu o alemão. As crianças estudavam até a 4a série primária, então tinha que estudar para padre. Tive sorte de ganhar uma bolsa do Brizola, passei na Ufgrs, mas sempre era um colono do interior. Precisava trabalhar e fui para São Paulo, mas já não era colono, era gaúcho. Uma professora de Folclore da PUC de Campinas disse que o Rio Grande do Sul, em termos culturais, divide-se em dois estados: o do gaúcho, pilchado, com sotaque, roupas, comidas típicas e explorado plástica e culturalmente; e o dos descendentes de italianos, alemães ejaponeses, com sotaque, roupas, comidas, música, moradias características e não explorados plástica e culturalmente. Digo, sou eu, vou voltar e fazer um trabalho sobre a região. A temática não era a região, era eu na região. Essa é a minha inspiração.

Ateliê

“A natureza me deu meu ateliê, onde faço minhas obras. Nasci em São José do Herval, de onde se via Porto Alegre ou Caxias do Sul. Mas meu sonho de guri era morar em um lugar onde se visse Porto Alegre e Caxias do Sul, ao mesmo tempo. Tenho que ver as coisas que acontecem, não sei se é Deus, parece que tem uma entidade aqui que vai colocando as coisas e conforme as coisas vão acontecendo, eu vou fazendo quadros.”

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