Aquela velha criança

A nostalgia nos prega peças. Depois de certa idade, ali por volta dos 40, acentua-se a tendência de idealizar o passado: as músicas antigas eram melhores, os filmes, os modismos, os costumes, a civilização e o mundo eram melhores. Em alguns casos, talvez fossem mesmo. Na maioria das vezes, contudo, sentimos falta não do que nos cercava, do ambiente e cenários de décadas atrás. Sentimos provavelmente falta de nós mesmos, da juventude e sonhos que tínhamos, de quando tudo parecia um começo e tudo era possível.

Lembro de dois versos do poeta sírio Adonis que poderiam traduzir esse sentimento: “Não paro de andar atrás da criança / que não para de andar atrás de mim”.


Na infância e começo da adolescência, ainda temos uma sensibilidade aberta. É só depois que uma couraça insensível começa a se formar. Cria-se ainda na juventude e continua endurecendo por toda a vida adulta.

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Alguém já comparou tal processo de crescimento com a formação das pérolas. Elas surgem apenas quando a ostra é ferida de algum modo, em geral pela invasão de um corpo estranho. Pérolas são ferimentos cicatrizados. E os seres humanos também aprendem a desenvolver mecanismos de proteção. Você cresce, envelhece, enfrenta suas batalhas como pode, corre atrás de seus objetivos e deixa ilusões pelo caminho.

Mas não todas. Algumas você vai conservar, mesmo sem perceber, até por sobrevivência – ou a necessidade de “manter o corpo e a alma juntos”, como diria o escritor Etgar Keret. Poderão ficar cobertas de pó e teias de aranha, mas estarão guardadas em algum lugar. Nem que seja somente uma ilusão, um único sonho para fazer a vida seguir. A velha criança não pode simplesmente parar de correr.

É mais ou menos o que nos mostra Dor e Glória, filme de 2019 de Pedro Almodóvar. O personagem Salvador é um diretor de cinema em crise, bem-sucedido mas decadente, acometido por doenças que o impedem de trabalhar. Também sente-se velho e sem mais nada para dizer. O que irá salvá-lo é uma inspiração vinda da adolescência – uma lembrança da época em que tudo parecia possível. Às vezes, é o que basta para tornar a vida presente possível.

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