Coxilha dos Piegas, no interior de Canguçu, é um daqueles lugares escondidos em meio a um labirinto de estradas de chão pedregosas. Na localidade, distante 30 quilômetros do trecho de asfalto mais próximo, vive Flávia Alessandra. Aos 11 anos, a menina de cabelo castanho e sorriso fácil já se acostumou a morar longe de tudo, sem ter ao seu redor praças, sorveterias e supermercados, tampouco internet e transporte público.
Para a escola, Flávia vai de Kombi. Ônibus não conseguem chegar na propriedade onde vive com o pai, Anarolino Duarte, operário, e a mãe, Sandra Harniech, agricultora. Em dias de chuva, o lugar fica isolado e Flávia não vai à aula. Nem mesmo veículos menores são capazes de vencer o terreno acidentado. Copiar o conteúdo dos cadernos dos colegas é rotina no inverno.
Apesar das dificuldades, quando perguntada sobre o futuro, ela não hesita. “Vou ser professora. Gosto de ler.” Ao ouvir os sonhos da filha, a mãe, que estudou até a terceira série, se desfaz em lágrimas enquanto mexe na panela com arroz, linguiça e ervilha sobre o fogão a lenha. “Vou me esforçar de tudo que for jeito para ela terminar os estudos. Eu não tive oportunidade, mas ela vai ter”, garante a mãe.
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Flávia almoça às 10h45, arruma o material e aguarda o transporte, que chega pouco antes do meio-dia. O trajeto até a escola, todo em estrada de chão, dura uma hora e 15 minutos – tempo de uma viagem entre Venâncio Aires e Porto Alegre. Em 2018, ela passou o equivalente a 21 dias dentro da Kombi.
A realidade de Flávia traduz o esforço diário de milhares de alunos, pais, professores, diretores e servidores que fazem a educação acontecer na área rural de Canguçu, município com o maior número de minifúndios das Américas e 12º maior território do Estado. Os 3,5 mil quilômetros quadrados de área são um grande mosaico fracionado em 17 mil pequenas propriedades, a maioria delas com até 10 hectares, onde vive cerca de 60% da população local.
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A costura entre as infindáveis frações de terra ocupadas por descendentes de pomeranos, portugueses, quilombolas e indígenas é feita por impressionantes 8,8 mil quilômetros de estradas vicinais. O número é 25% maior que a quilometragem de rodovias pavimentadas circunscritas pelo Daer. Para sobrepor os riachos e rios, são mais de 1,3 mil pontilhões.
Dos 3.876 alunos da rede municipal, 65% vivem no interior, onde também atuam 74% dos professores. Para garantir o transporte, todos os dias, antes do amanhecer, já está montada uma gigantesca força-tarefa. São mais de 200 rotas diferentes com veículos de todos os portes, que rodam 8,6 mil quilômetros por dia. “Temos professores que viajam quase duas horas para lecionar. A nossa jornada diária envolvendo transporte escolar começa às 5h15 e termina por volta de 18h30”, diz o secretário municipal de Educação, Esporte e Cultura, Cledemir Gonçalves.
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De acordo com o diretor geral da pasta da Educação, Diego Wolters, Canguçu deve fechar o ano com gasto de R$ 5,36 milhões em transporte escolar, equivalente a quase 45% dos salários dos professores que atuam fora da área urbana. “Temos escolas que ficam distantes 75 quilômetros da sede. Só com transporte, gastamos praticamente 13% de todo o orçamento disponível para a educação. Mas é uma realidade que estamos trabalhando para equacionar e amenizar.”
Na prática, Cledemir, Diego e todos os diretores de escolas rurais, além de educadores, também atuam como “gestores de frota”. “Basta dar problema em um dos veículos para que todas as rotas de uma escola precisem ser refeitas. Em dias de chuva, a situação se agrava, pois em lugares mais inóspitos o transporte não consegue chegar. E como a comunicação é bem precária, ficamos o tempo todo em volta do telefone”, comenta a diretora Daniele Feijó, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Castelo Branco, a mesma onde estuda Flávia Alessandra, distante 20 quilômetros da área central.
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Ao início e ao final de cada turno, o celular é o principal instrumento de trabalho de Daniele. “Precisamos ficar de prontidão caso dê problema com algum veículo ou alguma criança”, diz a diretora, mostrando a planilha com os seis veículos que rodam cerca de 478 quilômetros diariamente em dez linhas diferentes para atender 167 estudantes.
Entre os orgulhos da professora estão os baixíssimos níveis de desistência e de faltas, apesar das distâncias. “O senso de comunidade escolar aqui é muito forte. Os pais são muito presentes e nos respeitam.” Porém, depois do ensino fundamental muitos desistem, pois o governo estadual não oferece transporte para o ensino médio.
A professora Fernanda Goulart, que tem Flávia como aluna, não esconde o orgulho da pupila. “É o tipo de criança que nos motiva a vir para a escola, que dá razão à nossa profissão. Ela compensa as dificuldades com o esforço. No inverno, fica semanas sem vir, mas o caderno é sempre completo e caprichado.”
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Das 36 escolas municipais de Canguçu, 25 ficam na área rural. Destas, cinco tiveram em 2018 o primeiro ano com um sistema pioneiro de educação, desenvolvido no próprio município e que já apresenta resultados que deixam pais e professores eufóricos: as escolas de campo.
Para amenizar os efeitos das distâncias no desempenho de alunos e docentes, e também para incentivar o aprendizado de atividades rurais, nesse novo modelo os estudantes passam a frequentar a escola entre 9 horas e 15 horas, almoçando no colégio. “Assim, não precisam acordar tão cedo. Melhora a qualidade de vida de toda a família, pois as crianças saem de casa entre 7h30 e 8 horas e retornam perto das 17 horas. Estudam enquanto os pais estão envolvidos com as lidas rurais”, explica o secretário Cledemir Gonçalves. Ele ressalta também a modificação de algumas rotas do transporte escolar com a novidade. “Em 2017, rodávamos 10,6 mil quilômetros por dia. Em 2018, baixamos cerca de 15%. A economia foi de aproximadamente R$ 200 mil, que pudemos investir em material pedagógico e melhoria nas escolas.”
Mas a inovação nas escolas que mais encantou as famílias foi a alteração nos dias de aula. Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Cristo Rei, por exemplo, a rotina dos 130 alunos mudou drasticamente. “Ao invés de quatro horas de aula, cinco dias por semana, temos cinco horas de aula quatro dias por semana. Na segunda-feira, os alunos ficam em casa e desenvolvem algum projeto ligado à área rural em parceria com os pais”, explica o diretor, Elisnei Pires, também presidente do Conselho Municipal de Educação.
Ele considera o método um sucesso, que pode ser medido por dois indicadores principais. “O primeiro deles é a aprovação de 93% dos estudantes. O segundo é a presença de 98% dos pais nas reuniões escolares. Numa realidade de interior, com distâncias enormes e em plena época de colheita do tabaco, a forte presença dos pais mostra o comprometimento das famílias com a educação. Nos trabalhos dos filhos junto com os pais, incentivamos o diálogo e o companheirismo em casa”, destaca Pires.
Um dos pais mais entusiasmados é o produtor de leite Renato Müller, pai de Julio, de 8 anos, que é autista. “Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Ele está comendo melhor e está mais interessado. Estudou em escolas da área urbana e não teve uma adaptação como aqui. Que coisa maravilhosa que fizeram”, comenta. Para o casal Nardel e Andriza Cruz, pais de Elisa, de 7 anos, a novidade foi transformadora. “Esta questão de eles estudarem coisas da área rural junto com a gente aproxima mais pais e filhos. E ter um dia livre na semana também ajuda muito”, observa Andriza.
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