Santa Cruz do Sul acordou alvoroçada nessa sexta-feira com a notícia de que um universitário de 26 anos escondia um arsenal de guerra no loft onde morava sozinho, no Bairro Avenida. Após meses de investigação, agentes da Delegacia Especializada em Furtos, Roubos, Entorpecentes e Capturas (Defrec) encontraram nada menos que oito fuzis calibre 556, sete fuzis 762, 20 pistolas 9 milímetros, uma pistola .45, dezenas de carregadores e 7,3 mil munições de diversos calibres. O carregamento é avaliado em pelo menos R$ 3 milhões. Trata-se da maior apreensão de armas já realizada pela Polícia Civil gaúcha.
O estudante de Engenharia Jerônimo Jardim Lopes, conhecido como Japa, estava dormindo quando, logo depois das 7 horas, a polícia chegou ao local. Ele não reagiu e foi preso em flagrante por porte ilegal de armas de uso restrito. Natural de Cachoeira do Sul e aluno da Unisc, o jovem de classe média estaria recebendo R$ 10 mil por mês para guardar o arsenal no loft alugado que fica na Rua Samuel Pinto Cortez. O delegado regional Luciano Menezes diz que a localização do imóvel era estratégica: era possível acessar a BR-471 sem passar pelo Centro da cidade.
“Conseguimos descobrir o esconderijo em um local totalmente insuspeito, nas cercanias da Unisc, onde um universitário havia sido cooptado”, explica. Responsável pela defesa de Lopes, o advogado Lino Marcelo Vidal Munhoz, de Cachoeira, informou à Gazeta do Sul que o estudante só vai se pronunciar em juízo. Segundo a polícia, as armas pertencem à facção Os Manos, que domina o tráfico de drogas na região dos Vales e divide com um grupo rival o controle da venda de entorpecentes no Rio Grande do Sul. O poderio bélico dos traficantes na cidade surpreendeu até mesmo o experiente delegado regional. “Temos armas e munições para dar inveja às facções do Rio de Janeiro”, conta Luciano Menezes.
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De acordo com o delegado, as investigações apontaram que a facção vinha aumentando o arsenal ao longo do ano para garantir a manutenção do controle dos pontos de vendas de drogas. “Essa ação da polícia vai diminuir substancialmente o poder de intimidação e o poderio bélico da facção dentro de Santa Cruz, Venâncio Aires e também em Lajeado, onde essas armas eram usadas para incursão e tomada de território”, ressalta.
Operação da Polícia Civil apreendeu 36 armas – 21 pistolas e 15 fuzis – na casa de um universitário. Armamento fazia parte do arsenal da facção Os Manos, que comanda o tráfico na região
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Não foram só a quantidade e qualidade do material apreendido nessa sexta-feira que chamaram atenção dos policiais. Entre as armas escondidas no forro do loft em que vivia o universitário Jerônimo Jardim Lopes, estava a que é considerada o xodó do chefe da facção Os Manos em Santa Cruz, Venâncio Aires e parte de Lajeado. Um fuzil FAL, calibre 762, personalizado, é o modelo preferido por Antônio Marco Braga Campos, o Chapolin, de 34 anos, preso na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). “O Chapolin é o cara que comanda o tráfico por aqui e é o dono de todas as armas que apreendemos hoje”, explica o delegado regional, Luciano Menezes.
O mesmo modelo de fuzil usado por Chapolin é utilizado pelo Exército Brasileiro. No entanto, a arma das Forças Armadas é produzida pela Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel), vinculada ao Ministério da Defesa. Já o fuzil que estava em posse dos traficantes vem do Paraguai, via Paraná, e é da FN Herstal.
Todas as armas apreendidas pela Polícia Civil na operação dessa sexta são de uso restrito, mas nenhuma das unidades estava com a numeração raspada. “Um disparo de uma arma dessas é extremamente potente. Atravessa um carro, uma parede. São poucas equipes de polícia que têm esse arsenal. Isso mostra a gravidade da situação. O normal é um criminoso usar um revólver calibre 38, 32, no máximo uma pistola 9 milímetros. Mas uma pistola, não 20”, explicou o delegado Marcelo Chiara Teixeira, titular da Defrec.
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No total, a Polícia Civil apreendeu oito fuzis calibre 556 e sete fuzis 762 – dentre eles o FAL de Chapolin e seis AK47. Na casa do universitário, havia ainda 20 pistolas 9 milímetros da marca Glock e uma pistola FNX .45. O material apreendido foi levado ainda na noite de sexta em um carro-forte para a sede do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), em Porto Alegre.
Entenda a ligação com o jogo do bicho
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O lucro da organização criminosa vai além do valor recebido com a venda de cocaína. A facção tem expandido sua forma de atuação e passou a cobrar uma espécie de mesada dos responsáveis pelo jogo do bicho e caça-níqueis em Santa Cruz. A extorsão não é uma novidade. “Os Manos já tinham feito isso no ramo do cigarro contrabandeado na região”, diz Luciano Menezes.
Segundo a investigação, os bicheiros teriam sido obrigados a pagar para a organização criminosa R$ 650 mil mais 10% do lucro com o jogo. “O pessoal já teria pago duas parcelas de R$ 50 mil. Ou seja, o Chapolin já extorquiu R$ 100 mil destes outros contraventores, exploradores de atividades ilegais”, explica o delegado regional.
Os supostos bicheiros que não pagaram a mesada tiveram suas casas metralhadas. O primeiro caso registrado em Santa Cruz foi no dia 24 de setembro. Na ocasião, o imóvel de uma família foi alvo de disparos de um fuzil calibre 556. No dia seguinte, os criminosos voltaram e efetuaram pelo menos dez tiros contra a residência. Ninguém ficou ferido. No dia 27 de setembro, um prédio foi alvejado. Cerca de 40 tiros foram efetuados com o uso de pistola 9 milímetros e fuzil 556, armas localizadas nessa sexta.
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Crime cometido por estudante é hediondo
No dia em que Jerônimo Jardim Lopes foi preso por guardar em casa a maior quantidade de armas já apreendida pela Polícia Civil no Estado – todas de uso restrito –, o Diário Oficial da União publicou a Lei 13.497, que inclui a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito no rol dos crimes hediondos.
A lei foi sancionada nessa quinta-feira pelo presidente Michel Temer. Assim, pessoas que possuírem ou portarem ilegamente armas de uso restrito, caso do universitário, responderão por crime hediondo. Os condenados cumprem pena em regime fechado, sem direito a fiança, anistia ou indulto e com progressão de regime mais lenta.
Entenda: quem domina o tráfico em Santa Cruz do Sul?
Desde 2013, o tráfico de drogas em Santa Cruz é controlado por uma organização criminosa que tem sede no Vale do Sinos. É a facção Os Manos, que comanda os pontos de vendas de entorpecentes no município. “Nossa primeira operação data do fim de 2012 e até agora são praticamente cinco anos de incursão em Santa Cruz”, conta Luciano Menezes.
Cumprindo ordens de Chapolin, que está preso em regime fechado na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, comparsas assumiram a gerência local do tráfico. “Ele comanda tudo isso através do telefone e tem um lucro fantástico em Santa Cruz.” De acordo com as investigações da Polícia Civil, a facção fatura semanalmente entre R$ 180 mil e R$ 200 mil vendendo cocaína em pontos de tráfico do Bairro Bom Jesus. “É a facção que mais movimenta dinheiro no Vale do Rio Pardo, que causa medo, mata pessoas e aufere um lucro fora do comum.”
Para que esse grupo criminoso funcione, existe uma organização complexa. Enquanto Lopes era o responsável por guardar as armas, há outras funções dentro dessa lógica quase empresarial. “Tem uma pessoa que é a responsável pela distribuição dos entorpecentes, outra que cuida do recolhimento do dinheiro, há aqueles em escalão menor, que pegam as armas e ficam dando tiros nas casas por conta do jogo do bicho, por exemplo. É uma escadinha que tem vários degraus.”
No dia último dia 20, em uma operação da Polícia Civil no Residencial Terra Nova, na Rua da Pedreira, foi apreendida uma Toyota Hilux blindada, que havia sido furtada do estacionamento de um supermercado em Porto Alegre. Segundo Menezes, a caminhonete estava com o responsável pelo recolhimento do dinheiro da facção. “Na semana passada, apreendemos R$ 30 mil e uma caminhonete furtada blindada que servia para o transporte do dinheiro.”
O impacto
Ainda não é possível afirmar como a facção Os Manos irá se reestruturar depois de ter seu arsenal desmantelado com a apreensão dessa sexta-feira. Para os delegados que coordenaram a investigação, no entanto, há uma certeza: a operação não irá acabar com o tráfico em Santa Cruz. “O mercado consumidor de entorpecentes na região é muito grande. Então é óbvio que a organização seguirá lucrando. Enquanto tiver gente comprando, eles irão vender”, explica o regional Luciano Menezes.
Ainda assim, o resultado da operação foi comemorado pela equipe da Polícia Civil. “Hoje nós quebramos as pernas da facção”, explica Menezes. Para Chiara, titular da Defrec, tirando as armas de circulação deve haver uma diminuição do número de mortes no município.
Vizinhança: som alto e festas eram reclamações constantes
Poucas horas após a apreensão, os vizinhos ainda estavam em choque. Moradora do mesmo condomínio, Juliana*, de 27 anos, comentou que foi acordada pelas sirenes da polícia e nunca havia desconfiado do suposto envolvimento do rapaz com o tráfico. Apesar de pouco ter visto Jerônimo Jardim no tempo em que reside no local, reclamou que as festas no loft eram constantes. “Alguns moradores até pensaram em organizar um abaixo-assinado para expulsá-lo por conta do barulho, mas isso não chegou a ser feito.”
Segundo ela, as reuniões com amigos tinham início, muitas vezes, já nas quartas e seguiam até o fim de semana. “Era impossível dormir. Muita movimentação de carro e música eletrônica ‘a toda’”, complementou. Comentário no bairro, a operação também deixou em alerta um aposentado de 74 anos. Morador mais antigo da rua, ele disse que nunca havia presenciado nada parecido pelas redondezas. “Impossível não ficar assustado e pensar que por pouco não aconteceu um tiroteio perto da minha casa.”
Outra vizinha que também se incomodara com as festas organizadas pelo jovem é Maria, de 42 anos. O som alto e o constante entra-e-sai de jovens na casa até o amanhecer eram queixas recorrentes dos moradores. “A nossa desconfiança é que rolava muita droga. Seguido víamos algumas pessoas saindo da casa bastante alteradas. E pessoas com uma condição financeira privilegiada.” Apesar de concordar sobre a algazarra no local, os três vizinhos comentaram que durante o dia Jerônimo era tranquilo e pouco aparecia nas redondezas. “Fiquei arrepiada e com medo quando soube de tudo. Inacreditável pensar que estava assim, do lado”, finalizou Maria.
(*) Nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados
Quem é o estudante de Engenharia que guardava as armas
A prisão de Jerônimo Jardim Lopes, de 26 anos, que guardava um arsenal avaliado em R$ 3 milhões no loft onde morava sozinho no Bairro Avenida, em Santa Cruz do Sul, surpreendeu muitos de seus conhecidos e parentes em Cachoeira do Sul, sua terra natal. Abalados com a notícia, familiares, ex-colegas e amigos de Japa, como era conhecido, falaram sobre o assunto mas pediram o anonimato. Igualmente surpreso, um amigo de Santa Cruz também contou um pouco da rotina do rapaz.
Filho de um pecuarista e membro de uma família com boa condição financeira, Lopes cursou o ensino médio no Colégio Ulbra São Pedro, em Cachoeira. Aprovado no vestibular, mudou-se há cinco anos para Santa Cruz, onde morava sozinho e cursava Engenharia Civil na Unisc. Ele tinha boa relação com parentes de Santa Cruz.
Segundo um tio, o rapaz estava na reta final da faculdade, já na fase de elaboração do trabalho de conclusão e prestes a se formar. “Ninguém entende isso. Um guri com a postura dele e da forma como foi criado, com uma família bastante unida. É difícil acreditar no que está acontecendo”, desabafou. O tio também se surpreendeu com a informação de que o rapaz estaria recebendo R$ 10 mil por mês para guardar um arsenal em casa. “Seguidamente ele pedia que a família mandasse dinheiro”, afirma.
O pai de Jerônimo Jardim Lopes, que vive na região do Irapuá, interior de Cachoeira, viajou a Santa Cruz ainda pela manhã para acompanhar o filho caçula – ele tem quatro irmãs. Aos 2 anos o rapaz ficou órfão da mãe, morta em um acidente de trânsito, de quem ainda seria pensionista, conforme comentou um ex-colega de faculdade. “Ele era meu amigão. Seguidamente dormia na casa dele, viajávamos juntos, jogávamos bola. Havia um comentário de que ele estava enrolando a conclusão da faculdade para não perder a pensão”, contou.
Sem contato com Lopes há cerca de um ano, desde que se formou, o ex-colega diz que nunca desconfiou que o amigo pudesse ter qualquer envolvimento com o crime. “Ele estava trabalhando em Santa Cruz, tinha um bom futuro pela frente.” O universitário estaria estagiando em uma empresa do setor. Um amigo de Santa Cruz informou que o jovem era bem relacionado e gostava de frequentar boas festas. Seguidamente reunia os mais chegados no loft do Bairro Avenida e, algumas vezes, foi alvo de reclamação dos vizinhos pelo excesso de barulho. “É uma excelente pessoa. Estou surpreso e triste pelo caminho que ele escolheu”, desabafou o rapaz, confirmando que o amigo levava um padrão de vida elevado.
O delegado Luciano Menezes destacou que Lopes não tinha antecedentes e, até alguns dias atrás, nunca havia aparecido em nenhuma investigação. “Era um rapaz totalmente insuspeito”, reforça. O universitário estava dormindo quando a polícia chegou ao loft. Ele não reagiu e permaneceu calmo. Ao longo do dia, enquanto aguardava para prestar depoimento, teve momentos de nervosismo e choro na delegacia. No fim da tarde dessa sexta, foi levado ao Presídio Regional.
ENTREVISTA
Gazeta – Como a polícia chegou ao loft?
Menezes – Essa apreensão é resultado de um trabalho árduo que a polícia vem fazendo há bastante tempo, especialmente neste ano, quando tivemos a noção exata de que a facção Os Manos estaria aumentando o acervo bélico para garantir os pontos que eles já tomaram aqui em Santa Cruz, em Venâncio Aires e parte de Lajeado. Ao longo da investigação, entendemos que eles não estavam guardando o arsenal no Bom Jesus. Apuramos que o arsenal estaria fora de lá. Imaginei que pegaríamos dois, três fuzis, uma ou duas pistolas. Acabamos apavorados com a quantidade e qualidade do material encontrado.
Gazeta – O que deve acontecer a partir de agora? Existe alguma expectativa?
Menezes – Tenho que ser honesto e dizer que o tráfico não acaba por conta dessa apreensão. Eu estou literalmente apavorado com a quantidade. Mas é óbvio que o tráfico vai continuar e, como o mercado consumidor de entorpecentes é muito grande, obviamente a facção vai continuar obtendo lucro. Daqui a um tempo, nós teremos tantas armas iguais a essas de novo aqui na cidade. Isso aqui é trabalho de um, dois, três anos para que fosse sendo adquirido e chegasse aqui. Hoje nós quebramos as pernas da facção.
Gazeta – Essas armas têm sido usadas em crimes praticados no município?
Chiara – Podemos dizer que esse material já foi utilizado para causar várias mortes. As armas foram usadas em tiroteios que aconteceram recentemente, em casas que foram metralhadas. Com certeza essas armas estão ligadas a esses atos, são usadas na guerra do tráfico. Tirando isso das ruas, vamos conseguir diminuir o número de mortes.
Gazeta – Qual a importância dessa apreensão no combate ao crime na cidade?
Chiara – Para nós, é um momento muito importante no combate ao crime organizado, a essas facções que são comandadas de dentro de presídios e estão tomando conta da nossa região. É um golpe bem forte nesses criminosos.
Gazeta – Por que Os Manos tinham esse arsenal em Santa Cruz?
Menezes – A gente sabe que a facção sempre manteve um certo arsenal em Santa Cruz para manter a hegemonia, o monopólio da exploração de drogas dentro da cidade. Afinal, existem outros grupos criminosos que exploram o tráfico em outras regiões do Estado. Os Manos vieram para cá, se estabeleceram. Eles mostram esse arsenal nas redes sociais para colocar medo nos concorrentes. De um tempo pra cá, depois de bater em portas erradas, entendemos que, por questão de estratégia, a facção estava mantendo essas armas fora dos bairros em que a polícia faz ações mais efetivas. Só não sabíamos onde. Nos últimos 15 dias, tivemos a informação sobre esse estudante. Não temos noção, eu confesso, se isso é tudo ou se tem mais armas na cidade. Mas, com certeza, foi um duro golpe.
Gazeta – Qual encaminhamento o caso terá a partir de agora?
Menezes – Em relação ao universitário, tivemos êxito de localizá-lo e apreender todo o arsenal. O jovem foi autuado pela posse ilegal desse material todo, o que agora é considerado crime hediondo. A lei foi sancionada na quinta-feira pelo presidente da República. Temos outras investigações mais abrangentes, que envolvem outras pessoas. Mas isso é coisa para os próximos meses, para o futuro.
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