Quatorze anos após a proibição dos bingos, o Brasil deu “uma chance” aos jogos de azar ao legalizar, no fim de 2018, as apostas esportivas online. A lei assinada pelo então presidente Michel Temer, porém, ainda aguarda uma regulamentação. Enquanto isso, o mercado cresce em ritmo acelerado: estima-se que os sites de apostas movimentem nada menos do que R$ 4 bilhões por ano no Brasil.
Na prática, trata-se de um fenômeno mundial. As receitas da Fifa com a Copa do Mundo de 2018 foram inferiores a 6 bilhões de euros, somando direitos de TV, patrocínios, licenciamento e bilheterias, entre outros. Já o volume global de apostas online relacionadas com o Mundial chegou a nada menos que 136 bilhões de euros. “Isso sem contar que dentre as dez maiores economias do mundo, Estados Unidos, onde se imagina que apostas ilegais cheguem a mais de US$ 200 bilhões por ano, China, Japão e Brasil ainda não têm regulamentação adequada para o setor”, observa o advogado e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Pedro Trengrouse, que é membro da International Association of Gaming Advisors (Iaga).
Para o analista, o crescimento do universo das apostas está alinhado à expansão digital. “Apostas, principalmente online e em tempo real, mudam completamente a experiência dos torcedores”, diz. Segundo o gerente no Brasil da empresa KTO, o santa-cruzense Cássio Filter, a maioria das apostas são de valores baixos – R$ 50,00 a R$ 200,00 –, o que indica que a maior parte dos usuários está em busca de diversão, sem maiores riscos. “As pessoas gostam de apostar. Não é à toa que temos Mega Sena, Tele Sena, TriLegal e tantos outros”, defende.
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Por causa da falta de legislação, as empresas que mantêm portais como Bet365, Sportingbet, NetBet e KTO não têm sede no Brasil e sequer pagam impostos no País, embora sejam cada vez mais frequentadas por brasileiros e até patrocinem clubes de futebol nacionais. Os defensores da liberação alegam que, além de gerar arrecadação para o poder público e movimentar a economia, isso vai permitir um controle maior sobre o setor e coibir tanto a dependência de usuários quanto a atuação de empresas suspeitas.
“O Brasil hoje está completamente exposto”
Para Pedro Trengrouse, a preservação da integridade do esporte e dos torcedores e a proteção da economia popular devem ser as prioridades da futura regulamentação. Na prática, isso significa mecanismos para coibir empresas que não tenham capacidade para honrar seus compromissos com os apostadores e evitar a manipulação de resultados esportivos.
Conforme ele, a falta de uma regulamentação vem causando prejuízos a muitas pessoas. Em 2005, por exemplo, uma investigação da Polícia Federal levou à anulação de 11 partidas do Campeonato Brasileiro no episódio que ficou conhecido como Máfia do Apito. Em 2017, milhares de apostadores ficaram sem receber prêmios porque bancas não honraram apostas nos resultados da 13ª rodada da Série A, quando times visitantes ganharam a maioria dos jogos, elevando significativamente a premiação. “O Brasil hoje está completamente exposto. Só com a regulamentação das apostas será possível preservar a integridade do esporte e proteger a economia popular”, observa Trengrouse.
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Para o analista, porém, a política de tributação pesada, que é defendida por alguns setores como forma de evitar o estímulo ao jogo, não é o melhor caminho, já que pode ter o efeito adverso ao que se busca e afugentar as empresas. “As melhores práticas internacionais não apontam nessa direção, pelo contrário. O jogo legal é a melhor ferramenta de combate ao jogo ilegal, e uma taxação abusiva não contribui em nada para o mercado.”
Atualmente, sites com licenças em mercados maduros, como Inglaterra, França, Espanha e Portugal, oferecem mais segurança quanto ao pagamento dos prêmios. Conforme Trengrouse, porém, a falta da regulamentação também expõe tanto as empresas quanto os apostadores a riscos: o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais define apostas esportivas de qualquer natureza como jogo de azar, estabelecendo pena de prisão e multa de até R$ 200 mil inclusive para o apostador, ainda que pela internet ou qualquer outro meio de comunicação. “Enquanto não houver a devida regulamentação, os riscos são grandes”, conclui.
COMO FUNCIONA
Para apostar, o usuário precisa se cadastrar na plataforma. Esse cadastro geralmente é gratuito, e não há cobrança de taxa sobre cada palpite. A receita das empresas advém apenas do fluxo das apostas.
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A lista de possibilidades de aposta é imensa. As modalidades vão de futebol a críquete, passando por basquete, tênis, MMA, fórmula 1 e até esportes menos populares no Brasil, como hóquei e beisebol. Em algumas plataformas, também é possível apostar em outros segmentos que não o esporte – como os filmes que vão ganhar o Oscar ou o candidato que vencerá a eleição presidencial dos Estados Unidos.
Embora as empresas sejam internacionais, o rol de competições inclui até eventos regionais de menor porte. Atualmente, é possível apostar na Copa São Paulo Sub-20 e no Campeonato Potiguar, por exemplo.
As apostas não se restringem ao placar final de uma partida ou corrida. No futebol, pode-se apostar no total de gols, no resultado do primeiro tempo, no número de escanteios e em qual será a primeira e a última equipe a marcar, entre vários outros. Além disso, é possível apostar “ao vivo” – ou seja, enquanto a partida acontece.
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Ao fazer o cadastro, o usuário credita o valor do qual deseja dispor para jogar. Há um valor mínimo para cada aposta – que, em alguns serviços, é de apenas R$ 1,00.
Cada possibilidade de aposta possui uma cotação, chamada “odd”, que é definida pela probabilidade e indica quanto o apostador vai ganhar. Por exemplo: se o usuário colocar R$ 50,00 em uma aposta cuja odd é 1,50 e acertar, ele receberá R$ 75,00. Já se a odd for 2,00, ele receberá R$ 100,00.
Essa probabilidade é fixada pela própria plataforma, com base em estatísticas pregressas. Quanto menor for a odd, maior é a chance de a aposta ser certeira. Exemplo: se um clube é favorito para vencer determinada partida, sua odd vai ser menor que a do outro.
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Também é possível realizar apostas acumuladas: o usuário faz várias apostas ao mesmo tempo e a odd final é a multiplicação da odd de cada uma. Assim, se fizer cinco apostas de odd 2,0, a odd final será 10,0. Para ganhar, porém, é preciso acertar todas.
As apostas são individuais, ou seja, a disputa é sempre entre o usuário e a banca. Não há sistema de “bolão”, em que um valor é rateado entre todos os apostadores que acertaram.
Quando deseja retirar o valor que possui em seu saldo, o usuário solicita o saque à plataforma. A transferência pode levar de um a quatro dias, dependendo das regras adotada pela empresa.
“Aposto só para me divertir”
Para Vitor Macedo Silva, apostar não é uma fonte de renda, mas uma forma de lazer. Começou há dois anos, quando descobriu o site Betfair. À época, porém, a brincadeira durou apenas três meses e ele abandonou. Retornou no ano passado, desta vez no KTO.
Desde então, o programador de 22 anos aposta praticamente todas as semanas. De perfil que ele define como moderado, joga valores baixos, apenas em futebol e em clubes que conhece, sobretudo em campeonatos nos quais jogam times brasileiros (Brasileirão, Copa do Brasil, Libertadores), além da Champions League. Seu método para não ter problemas é o seguinte: a cada rodada, faz uma aposta de maior risco e outras mais seguras. Também dá preferência para as apostas de resultado, embora avalie como são as “odds” das demais possibilidades.
Silva conta que tomou gosto pelas apostas quando percebeu que elas davam mais emoção aos jogos, inclusive os que não possuem tanta importância nos torneios. “É só para me divertir. O que vier é lucro. Coloquei uma grana e já consegui tirar o que coloquei, então estou mais na diversão mesmo, sem risco de perda significativa”, relata.
Uma das experiências mais emocionantes foi na final da Copa Libertadores do ano passado. Silva havia feito uma aposta mais alta do que as suas regulares em favor do Flamengo, que perdia o jogo para o River Plate até os 44 minutos do segundo tempo. Com a virada histórica, ele saiu no lucro. Como prefere não se arriscar tanto, o máximo que conseguiu ganhar em uma única aposta foi cerca de R$ 150,00.
Silva relata ainda que já recebeu alertas para tomar cuidado nos jogos. “A família diz para cuidar para não viciar e perder muito dinheiro com isso. Mas, no geral, é bem tranquilo”, conta.
ENTREVISTA
Danrlei (PSD)
Deputado federal
Gazeta do Sul – Por que a regulamentação das apostas online é tão importante?
Danrlei – O jogo no Brasil não parou por causa da proibição. Muitas pessoas jogam, sim. Vejo que, se tivermos controle sobre isso, se tivermos números exatos, melhor. Hoje, inclusive, muitas pessoas jogam sem segurança, em serviços clandestinos. Nos Estados Unidos, por exemplo, os números são passados diariamente para uma agência reguladora.
A regulamentação vai sair em 2020?
Estamos trabalhando para que isso aconteça o mais rápido possível. Mas é importante dizer que, como a subcomissão é vinculada à Comissão do Esporte, meu relatório nesse momento vai levar em consideração muito mais o que essa regulamentação pode trazer de benefício para o esporte. E já percebemos que vai: muitos sites de fora do País estão patrocinando clubes brasileiros. Mas precisamos de uma regulamentação bem clara e segura, sobretudo para que os sites sérios de apostas venham trabalhar no País. Se sentirem mais segurança jurídica em outros países, eles não virão para cá. E aí o dinheiro dos apostadores brasileiros, que já são muitos, continuará indo para fora, o governo não vai arrecadar nada e não teremos controle nenhum sobre os apostadores.
Controle sobre os apostadores em que sentido?
É preciso saber se as pessoas que gostam de apostar não estão passando do limite e se isso não está começando a se tornar um vício. Mas ainda existe uma discussão muito grande sobre qual a melhor forma de regulamentação. A Caixa Econômica Federal tem uma ideia, o Ministério da Economia tem outra, os grandes sites de aposta têm outra, então estamos ouvindo todos e tentando chegar a uma formatação que ofereça segurança jurídica aos sites sérios. Ao mesmo tempo, precisamos de uma agência reguladora que fiscalize, junto com o governo e a Caixa Federal, para que as pessoas não fiquem viciadas. E se ficarem, que elas tenham o tratamento. Nos países onde essas empresas operam, há um controle. Eles conseguem ver quando o apostador está indo para o caminho do vício e aí comunicam os governos. Claro que existe o vício e que tudo o que é demais, faz mal. Por isso que estamos buscando a melhor regulamentação possível para o País.
A fiscalização parece ser o ponto mais importante do debate.
Essa é a grande discussão. É preciso uma fiscalização tanto para que as pessoas não caiam no vício quanto para que não se burle a lei. Já aconteceu em outros países de pessoas tentarem manipular jogos para ganhar apostas. Então, é necessário fiscalizar para que o apostador tenha segurança no que está jogando.
Ainda existe muita pressão contrária às apostas de setores conservadores, como a bancada evangélica?
Isso existe e vai sempre existir, embora a pressão maior seja sobre cassinos e bingos, até porque esses lugares tiram pessoas das igrejas. Mas no que toca às apostas online, a lei já existe. A discussão sobre autorizar ou não as apostas já passou. O que estamos tratando agora é sobre a regulamentação.
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