Exatamente no mesmo dia em que o Marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República do Brasil, em 15 de novembro de 1889, passava a funcionar em Santa Cruz do Sul a Clínica Vida Nova. Mais de um século depois, o prédio histórico no acesso para Rio Pardinho, que sediava o popularmente chamado “Sanatório Kaempf”, sofre com invasões e a ação do tempo.
Para a família Kaempf, que morou no local até 2018, o cenário é de preocupação com uma construção que conta um pouco da história de Santa Cruz do Sul, mas está sendo destruída pela falta de manutenção e por vândalos. Atual administrador do espaço, o Grupo Faveni, dono da Faculdade Dom Alberto, divulgou em 2019 a intenção de construir um novo campus e um condomínio residencial na área de 28 hectares. Uma intervenção aguardada com ansiedade.
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Invasões aumentaram com divulgação de vídeos e fotos na internet
Fundada por Carl Hermann Eduard Kämpf, médico nascido em Leipzig, na Alemanha, no ano de 1859, a Clínica Vida Nova era um local que recebia pessoas que procuravam diferentes tipos de tratamento e se tornou referência no Rio Grande do Sul. O nome de batismo da instituição era Natur-Heilanstalt Santa Cruz (Hospital de Cura Santa Cruz). Kämpf era um naturalista e trabalhava com terapias alternativas, como a hidroterapia, que alternava banhos quentes e frios, e também utilizava a sauna a vapor. Com a instalação da linha de trem e da ferroviária em Santa Cruz do Sul no início do século 20, o movimento da clínica aumentou.
O prédio recebeu ampliações com o passar do tempo, até ser considerado um “spa” no final da década de 1930, recebendo hóspedes que procuravam tratamentos para o stress e depressão. Em 1949, a clínica tornou-se um hospital geral. Na década de 1970, passou a atender pessoas com problemas mentais e usuários de drogas em tratamento. Foi fechada oficialmente em 1999, quando a família decidiu vender o espaço, adquirido pelo Grupo Faveni apenas em 2016.
Cynara Ferreira Kampf, de 56 anos, é bisneta do fundador da clínica, Carl Hermann Eduard Kämpf, cujo nome foi “aportuguesado” para Eduardo Kaempf pela população local. Segundo Cynara, que há três anos ainda residia no local com seus pais, Ivo e Zilda Kaempf, a família lamenta a situação em que o prédio se encontra hoje. Ela comenta que o lugar está sendo, aos poucos, saqueado por invasores. Portas, janelas, vidros, camas e qualquer objeto que possa ter valor e foi deixado pela família ao desocupar a estrutura estão sendo retirados. “A gente não mora mais lá, mas é caminho para casa. A gente acaba passando na frente, e cada vez que passamos estão tirando mais coisas. Esses dias paramos lá, eu e meu irmão, e tinha gente morando lá, invasores, pessoal que usa crack. É muito triste.”
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Em outra situação, a bisneta de Eduardo Kaempf conta que a polícia foi acionada para retirar um grande grupo de pessoas que estava instalado no local. “A polícia pegou um homem roubando umas banheiras na lavanderia. Prendeu uma pessoa e outros conseguiram fugir.” Em outro momento, Cynara flagrou uma pessoa furtando o para-raios que ficava no teto da construção.
A família comenta ainda que, recentemente, encontraram fotos e vídeos do lugar em publicações de redes sociais – o que aumentou a procura de curiosos. Muitas pessoas utilizam o local para tirar fotos, devido à beleza da construção. Cynara ressalta que as invasões começaram ainda quando a família ocupava parte do prédio. “Quando eram só eu, o pai, a mãe e meu irmão morando lá, já pedimos para a polícia retirar os moradores que estavam invadindo. Quando a gente saiu, começaram a tomar conta de vez.”
“O que foi o orgulho da família é hoje a maior ruína de Santa Cruz”
Administrador do local até 2018, Ivo Kaempf, de 85 anos, pai de Cynara, disse estar triste com a situação. Ele queixa-se de que uma publicações na internet associou o prédio abandonado com a presença de fantasmas e a tratamentos violentos com pessoas que apresentavam distúrbios mentais – inclusive com suposto uso de choques elétricos. “Infelizmente, estou vendo o que foi o orgulho da família sendo hoje a maior ruína de Santa Cruz. E foi um absurdo o que colocaram (na internet), não se informaram com ninguém da família. Estavam até procurando o túmulo do meu avô e não existe nada disso lá”, relata Ivo, neto do fundador da clínica.
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Cynara ressalta que, embora o espaço tenha tratado de pessoas com distúrbios mentais, o lugar sofre até hoje com uma ideia errada da população. Segundo ela, a Clínica Vida Nova foi um lugar que proporcionou tratamento para diversas enfermidades. “Realmente teve psiquiatria, tinha a ala lá do fundo, que na época recebia pessoas totalmente fora de controle, levadas pela polícia. Mas nunca teve cerca, sempre foi aberto, nunca foi hospital fechado. Mas ficam inventando tratamentos que nunca existiram.”
A família Kaempf ressalta, contudo, que fica feliz por saber da existência de um projeto de revitalização do local, e entende que existam dificuldades para manter o espaço pelo grupo educacional que administra o prédio da antiga clínica.
Dom Alberto diz que mantém “projeto grandioso”
A reportagem da Gazeta do Sul visitou na sexta-feira o prédio da antiga Clínica Vida Nova para apurar as denúncias de que o espaço estaria sendo invadido com frequência. Apesar do portão fechado, a cerca na entrada do prédio está danificada e apenas uma fundação do muro, com altura inferior a 30 centímetros, separa a rua do terreno da antiga Clínica Vida Nova.
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Sem um cuidado permanente do espaço e sem portas nas entradas, é fácil enxergar vestígios de que o lugar está sendo ocupado por invasores. Garrafas vazias, roupas, calçados e colchões espalhados pelas dezenas de quartos dos prédios, além de pichações nas paredes, denunciam que o lugar vem sendo frequentado. Após cerca de meia hora no local, a reportagem foi abordada por vigilantes da empresa que faz a segurança da área. Eles confirmaram que o local é destino de pessoas que buscam abrigo durante a noite. Atualmente a vigilância do prédio foi reforçada e a empresa realiza rondas regulares para evitar novas invasões.
Apesar de não se manifestar oficialmente sobre o assunto, gestores da Faculdade e Colégio Dom Alberto comentam informalmente que a instituição de ensino mantém a intenção de reestruturar o espaço. Os serviços devem ser executados conforme projeto apresentado em 2019, que previa a construção de um campus e de um condomínio residencial, em um investimento de R$ 68 milhões.
A gerência do Dom Alberto limitou-se a dizer que existe um “projeto grandioso” para o lugar e que, em virtude da pandemia do novo coronavírus e de “questões burocráticas”, as obras ainda não tiveram início. Na época da divulgação do plano, em 2019, a previsão era de terminar as obras em dois anos.
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Nos quartos também é possível constatar os estragos.
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