Aproveitando a folga de um domingo chuvoso em Luanda, decidi visitar o Museu Nacional da Escravatura, ao sul da capital angolana. Percorro parte da estrada litorânea Luanda-Benguela, cercada por milenares baobás, ou imbondeiros, também conhecidos como “árvores-garrafa” na África, por armazenarem até 100 mil litros de água em seu tronco desproporcionalmente espesso e liso.
Ao chegar, para minha decepção, encontro o museu fechado, com um guarda vigiando a guarita que dá acesso ao local. De longe, avistei a construção, sobre uma colina à beira-mar, adjacente à antiga Capela da Casa Grande, onde os escravos eram batizados antes de partirem para a viagem sem volta ao Novo Mundo. Lamentei-me ao funcionário estatal, por ter vindo de longe e não poder visitar o museu sobre o qual eu tinha pesquisado. Solidarizando-se comigo, ele respondeu que poderia abrir, caso eu lhe desse uma “gasosinha”, gíria local para propina. Me fiz de desentendido, e ofereci uma garrafa de água com gás que eu trazia na mochila. Ele deu uma gargalhada e, mesmo sem os trocados solicitados, abriu a cancela e o museu.
Foi interessante conhecer os documentos ali guardados, os desenhos de navios com a logística macabra do tráfico humano, instrumentos de captura e aprisionamento de escravos etc. Mas, sem dúvida, o mais significativo foi estar no local em que o êxodo involuntário, a dor do distanciamento da terra-mãe e as agruras da escravidão eram vividos na carne. O tráfico só terminou, oficialmente, em 1836, quando Portugal proibiu a exportação de escravos de suas colônias.
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E, no fim das contas, foi bom eu ter ido ao museu em um domingo porque, com a boa vontade não remunerada do segurança, tive a chance de visitar sozinho, e em silêncio, aquele lugar emblemático, onde as paredes gritam por justiça e parecem exalar sangue e suor escravos. Luanda foi fundada por portugueses, em 1576, e se tornou o maior porto negreiro da história, com cerca de 4 milhões de escravos transportados a partir dali. Quando incluímos outras cidades angolanas, como Benguela e Ajudá (hoje no Benim), esse número cresce para 6 milhões de cativos. Angola, por linhas desgraçadamente tortas, tornou o Brasil economicamente viável a partir do século 17, com o ciclo do açúcar.
A cana-de-açúcar, originária do sudeste asiático, foi trazida ao Brasil pelos portugueses, mas os cultivos já existiam na costa do Mediterrâneo e nas antigas colônias lusitanas. Contudo, produzir o açúcar, primeiro produto de consumo em massa do planeta, na quantidade necessária para possibilitar sua popularização e satisfazer a crescente demanda europeia, requeria mão de obra intensa e numerosa, bem como as vastas áreas de plantio que o Brasil oferecia. As exportações do açúcar e, mais tarde, do café alçaram o comércio brasileiro a níveis mundiais e só se tornaram possíveis com a escravidão africana. Ao mesmo tempo, a demanda insaciável por esses produtos selou o destino e a maioria dos problemas sociais no Brasil e em Angola, com sequelas e preconceitos que, infelizmente, persistem até hoje.
Assim como países hoje se digladiam pela posse do petróleo, a África era um campo de batalha entre nações europeias nos séculos 17 e 18, competindo pela maior riqueza comercial da época: o tráfico de escravos negros para as Américas. A divisão política da África subsaaariana à qual estamos acostumados não refle te a divisão natural dos povos do continente, e esse é um dos motivos dos tantos conflitos na região, desfigurada pela fúria imperialista europeia dos últimos cinco séculos. Tribos e povos milenares, muitos deles com um passado rico, cultural e economicamente, foram forçados a conviver com fronteiras coloniais arbitrárias, ignorando divisões naturais existentes e criando problemas graves que, até hoje, não foram solucionados.
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