Antes que Eva, tomada por um frêmito indisfarçável, perguntasse àquele senhor sorridente de braços estendidos o que fazia ali, ao lado da vistosa e irrequieta cachorra, ele acolhe: “Sei da caminhada de vocês; de você, Eva, de quem lembro todos os dias, e desta querida menina, que escolheu seu próprio nome. Líris, teu nome significa flor do amor. Sei dos troncos cortados, queimados, enterrados e envenenados. Sei de vocês, criaturas mutiladas, sacrificadas, penalizadas sem culpa. Agora, precisamos tratar da ferida deste animalzinho. Um pouco de própolis vai evitar a inflamação e ajudar a cicatrizar. Sorte que a bala passou de raspão. Vejo que o cardeal já se recuperou.”
Enquanto aquele homem cuida do cervídeo, as duas cobras, em atitude memorial, se aninham no bolso do seu jaleco de médico. Ele segue: “Sou um velho. Venho de longe. Temos muito a conversar. Muitas histórias para contar. Mas, agora, quero pedir licença para caminhar com vocês. Prometo não atrapalhar muito, mesmo que meus passos sejam mais lentos. Gostaria de me alimentar de mel, pólen, própolis e geleia real como vocês. Quero beber da mesma água, buscar nas frutas e folhas o sol oxigenante da fotossíntese e os minerais que se ofertam. Vocês aceitam este velho selvagem e Luna, esta esperta parceira?”
A resposta vem na forma de abraço. Destes grandes e espontâneos, que não deixam ninguém de fora. Eva dá um passo à frente. Retira do bolso de seu vestido a lasca de arenito. Ergue-a para que todos a vejam. A luz do entardecer recolhe suas mais belas cores e ilumina o fragmento de rocha erguido pelas mãos em devoção. Às mãos de Eva se juntam as de Líris, dos troncos, dos animais e de um significativo grupo recém-chegado: “Não estranhem, somos os nativos que foram dizimados para que estrangeiros tomassem conta de tudo por aqui. Eles tinham medo da gente. Nos destruíram, expulsaram. Contaram coisas horríveis sobre nós quando queríamos apenas sobreviver.”
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Eva a todos deseja boas-vindas e aproveita o momento para reconhecer: “Não fosse esta adorável menina, não teríamos encontrado a relíquia escondida entre os blocos das fundações que sustentam o velho casarão onde morou sua mãe, Irene.” Líris, segurando a bonequinha, a todos magnetiza: “Esta pedra tem um desenho. É a figura de uma planta que só existe num lugar. Para lá é que precisamos ir. Todos nós. Até minha bonequinha”. Todos se movem. Por um instante, ao contornar um bloco de rocha, Eva e o ancião sentem seus corpos se aproximando. “Posso?”, pergunta o ancião. Ela mergulha seus pés na poça em frente. Ele, respeitosamente, se inclina e passa a lavar os pés de Eva. Sim. Ele é Cristian, ela é Eva. Líris os abraça. Um som mais alto imanta o horizonte: “Somos testemunhas!” Um brinde de néctar, que só as abelhas propiciam, a todos irmana.
Seis dias haviam se passado. Dias das flores verdes e da árvore tombada; da pedra encantada, da caminhada noturna em busca dos agressores e da criança que dorme inocente; da menina no porão, do encontro do fragmento de arenito hexagonal e da subida ao sótão para buscar a bonequinha de pano; da revelação do nome Líris e das árvores soterradas; dos diálogos entre Eva e Líris sobre Irene e árvores envenenadas; da furna das extinções, do veado ferido, do cardeal aprisionado e, agora, no sétimo dia, do inesperado e amoroso reencontro entre Eva e Cristian, o ancião selvagem, e da chegada dos nativos dizimados.
E todos viram que nem tudo estava bem. Longe disso: quanta destruição, quanta degradação, quanta maldade e quanto desrespeito. O mundo não está bem. Há muito a ser transformado. A missão transformadora ecoa no “Vamos” que a todos mobiliza. Eva, Líris e sua bonequinha, Cristian e Luna, troncos e criaturas, todos seguem. Vez ou outra, Luna se detém para lamber, curativamente, a ferida do cervo, acompanhado de perto pelo cardeal. Alcançam um platô. Dali visualizam uma casa. Uma casa dentro da água?
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