Nossa caçula, Ágatha, que por insistência dos leitores foi alçada a protagonista desta coluna, descobriu no perfil infantil da Netflix a série do Naruto, e decidiu dar uma espiada. Começou a assistir ao anime de forma despretensiosa, mas, ao cabo do terceiro episódio, já estava encantada com a aventuras do ninja loiro. Desde então, não fala em outra coisa lá em casa.
Por um lado, fiquei um pouco preocupado. A classificação da série é 10 anos e, portanto, faltaria um ano e meio para que Ágatha, formalmente, pudesse assisti-la. Contudo, percebemos que a traquinas, ainda que fale do Naruto o tempo todo, não tem buscado aplicar, na prática, contra nós ou contra os irmãos, as artes marciais com as quais o jovem ninja desafia incontáveis adversários.
Além disso, no anime todos os golpes – os jutsus – exigem poderes sobrenaturais, que envolvem uma complexa manipulação do chakra para arremessar nos oponentes esferas de energia, bolas de lava, torrentes de água, gases corrosivos, ciclones de areia e chamas escaldantes; ou mesmo para invocar certas criaturas – sapos gigantes, serpentes ou falcões – que também entram na luta. Ou seja, seriam necessários muitos e muitos anos de rigoroso treinamento para a caçula atingir tal nível de habilidade ninja. Por enquanto, estamos seguros.
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O problema é que, desde então, ficou mais difícil conversar com a Ágatha. Não sei nada do Naruto, ele não é do meu tempo. Na minha época de guri havia o Jaspion e os Changemans, seriados de sucesso, mas com enredos bem mais simples: basicamente os heróis se equipavam com armaduras high-tech e lutavam com monstros usando artes marciais, mas também espadas e pistolas a laser, além de supermotos e espaçonaves. Lá pela segunda parte de cada episódio o monstro morria, mas era ressuscitado e virava uma criatura gigante. Os heróis então se punham a pilotar imensos robôs e o monstro levava uma nova surra. Era assim, toda vez.
Já o Naruto é mais complexo, repleto de personagens, cada qual especialista em incontáveis combinações de jutsus e com personalidades moldadas por histórias de vida bastante dramáticas. Ágatha até tentou me dar uma aula sobre o anime, mas não fui um bom aluno.
– Pai, esse aqui é Sasuke, um dos poucos sobreviventes do clã Uchiha – explicou-me, mostrando uma imagem do personagem, no celular.
– Aham…
– E essa aqui é a Sakura. Ela não é muito boa na luta, mas aprendeu a controlar seu chakra para curar as pessoas. Então, virou uma grande ninja médica.
– Hmmm… Certo…
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E por aí foi, mostrando-me imagens dos heróis e vilões, descrevendo suas características e poderes.
Também falou de uma certa Raposa de Nove Caudas, o que me fez imaginar que o pobre bichinho teria sido vítima de alguma mutação genética. Até entender que tal criatura, inspirada na rica mitologia japonesa, é uma espécie de demônio interno que Naruto precisa aprender a controlar – o que, de certa forma, também aponta para a riqueza metafórica dos mangás e animes criados por Masashi Kishimoto.
Ágatha só esqueceu de avisar que planejava me aplicar uma sabatina sobre o tema, já no dia seguinte. Mas então eu já não lembrava de nada, a prova foi um fiasco.
– Poxa, pai… – lamentou-se a caçula. – Assim fica difícil ser a tua sensei…
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Não demorou até a caçula avisar que planejava fazer cosplay dos personagens do Naruto. Adiantou que, por causa da pandemia, pretendia vestir-se como Kakashi, ninja de cabelos prateados que usa uma máscara sobre o nariz e lábios.
– Assim fica mais prático – esclareceu. – Além de fazer cosplay, me protejo do vírus.
Acrescentou também que, além da máscara, o herói usa uma faixa, que lhe cobre o olho esquerdo. O que me levou a perguntar-lhe se o tal Kakashi seria um pirata.
– Ahhh, pai, tu não entende nada mesmo – retrucou a caçula, já aborrecida. – Ele usa a faixa para cobrir seu sharingan!
E, definitivamente, não entendi mais nada.
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Algum leitor mais atento e preocupado pode estar se perguntando por que escrever sobre super-heróis, ninjas, monstros, animes e outras coisas de nerd em um momento tão crítico.
– Naruto??? Em uma hora dessas???
Afinal, a pandemia atingiu seu auge no Estado e País, a bandeira preta tremula sobre nós, as UTIs superlotaram e muitas pessoas queridas se foram. Para piorar, a vacinação segue a passos de tartaruga em todo o Brasil. Este, impreterivelmente, é o assunto mais importante e vital no momento.
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Penso, contudo, que não podemos deixar que o vírus sufoque também o nosso humor, fonte de energia nutrida há milênios por histórias fantásticas, mágicas e sobrenaturais. Sejamos adultos ou crianças, o encantamento é parte da nossa essência, é componente de nosso espírito, é combustível para enfrentar desafios. Como já disse o filósofo Edgar Morin, o homo é sapiens, mas também é demens.
Não se trata, portanto, de negar ou fugir da dura realidade que estamos enfrentando, mas de fazer a nossa parte acreditando que, assim como nos antigos mitos e nas modernas histórias de heróis, ao final, o bem sempre vence.
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