Abolição da escravatura: um dia para refletir sobre a desigualdade racial

No dia 13 de maio de 1888, há 134 anos, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que decretava a abolição da escravidão em todo o território brasileiro e a libertação imediata de todos os escravos. Ao longo do século 20, a data se tornou um símbolo da liberdade e foi motivo de comemorações. A partir da década de 1990, contudo, esse entendimento começou a mudar e a simbologia perdeu força, dando lugar ao 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra. Ainda assim, a desigualdade racial que persiste na sociedade brasileira chama à reflexão e ao debate.

Vera Lúcia: racismo é crime imprescritível

Para a presidente do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir), Vera Lúcia da Silveira, a mudança necessária precisa começar pela educação de base. “Sempre digo que tudo passa pela educação. Ninguém nasce racista, a criança reproduz aquilo que ela vivencia no seu meio”, afirma. Para ela, os projetos político-pedagógicos atuais não são suficientes. Por exemplo, os próprios professores têm dificuldades para cumprir as determinações da Lei 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da rede de ensino.

Em sua visão, a sociedade brasileira teve avanços significativos na questão ao longo das últimas décadas. No entanto, as redes sociais acabaram se tornando uma ferramenta de propagação do racismo. “As pessoas estão praticando sem nenhum medo da punição”, observa. Conforme a Constituição Federal de 1988, o racismo é crime inafiançável e imprescritível, com penas de um a três anos de reclusão e multa. “A lei está aí, resta que as nossas autoridades a cumpram”, completa.

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Vera Lúcia ressalta a importância da política de cotas para a promoção da igualdade de oportunidades de acesso a vagas de ensino e de trabalho para a população negra. “Eu costumo dizer que um branco em uma esquina é somente um branco em uma esquina. Um preto em uma esquina é um suspeito.” Segundo ela, as denúncias de racismo que chegam ao Compir são muitas vezes chocantes e demonstram o quanto a sociedade ainda precisa evoluir.

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“Foi o primeiro grande movimento social”

Professor da Unisc, o doutor em História Mateus Skolaude observa que a data da abolição foi cultuada pelo movimento negro durante décadas. “Basta vermos quantos locais e eventos receberam como nome de batismo tanto 13 de Maio como Princesa Isabel.” Outro exemplo dessa simbologia pode ser visto no samba-enredo da escola Imperatriz Leopoldinense de 1989, na comemoração de um século da abolição. Intitulado “Liberdade, Liberdade! Abra as asas sobre nós”. Um de seus trechos diz “Pra Isabel, a heroína, que assinou a lei divina. O negro dançou, comemorou o fim da sina”.

Skolaude: a história foi ressignificada

A partir da década de 1990 e, sobretudo, dos anos 2000, ocorreu uma ressignificação do ponto de vista dessa simbologia. Segundo Skolaude, os movimentos deixaram de ver a assinatura da Lei Áurea como uma benevolência e a figura de Isabel como libertadora. “O abolicionismo foi muito mais complexo do que isso, e nós fizemos uma abolição sem nenhum projeto de Estado para a inclusão desses escravos libertos na sociedade”, explica. Com isso, o 20 de novembro – dia da morte de Zumbi dos Palmares – ganhou destaque como uma data de luta e de resistência para a população negra.

Skolaude enfatiza, porém, que o 13 de maio não deve ser ignorado, pois o abolicionismo foi o primeiro grande movimento social da história do Brasil. “Desde meados do século 19. já havia uma parcela considerável da população brasileira lutando contra a escravidão.” Dessa luta, que atingiu todas as camadas sociais, emergiram nomes como Joaquim Nabuco, André Rebouças, Luís Gama e José do Patrocínio, hoje consagrados como figuras determinantes. “Se por um lado o movimento negro tem uma leitura correta no sentido de questionar o papel simbólico da princesa Isabel e do 13 de maio, por outro lado negligencia ao não refletir sobre esse movimento extremamente importante que foi o abolicionismo”, afirma.

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Que inclusão?

Luís Fernando Ferreira
luisferreira@gazetadosul.com.br

“Que projeto de inclusão existe para os cidadão negros no Brasil?”, pergunta o advogado Doralino Silveira da Rosa, vereador suplente na Câmara de Santa Cruz. Ele ainda não vê uma resposta satisfatória. Frisa que a Lei Áurea não garantiu nenhum tipo de integração econômica, social e cultural para os escravos libertos. E defende a necessidade de medidas de reparação, como as cotas, para corrigir injustiças históricas.

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Doralino concorreu cinco vezes a uma vaga na Câmara, a primeira em 2000, quando ficou na suplência. Lembra que até hoje só houve um vereador negro em Santa Cruz do Sul, José Osmar Ipê da Silva (eleito em 1992). Desde então, afrodescendentes subiram à tribuna apenas como suplentes. “Isso mostra a dimensão da nossa dificuldade em termos de representação política.” Em cinco campanhas eleitorais, ele viu o racismo de perto. “Já escutei várias vezes a frase: ‘Cara, tu é um candidato bom, só que é negro’.”

Júlia de Souza também é vereadora suplente. Para ela, a data da abolição deve ser lembrada, mas “não há nada a comemorar”. Como exemplo, cita que a Lei Áurea não deu fim ao trabalho escravo, ainda uma realidade no Brasil. Ela entende que a população afrodescendente vive hoje momentos difíceis, “porque o negro resolveu escolher seu lugar na sociedade. Enquanto o branco decidia o lugar dele (na cozinha, serviços domésticos, trabalho braçal) na vida real e na TV, havia uma ‘paz’”. Agora, contudo, ela avalia que os racistas reagem expressando seu preconceito de forma cada vez mais ostensiva.

Ela frisa que há um sério problema de invisibilidade dos afro-brasileiros em Santa Cruz. “Somos quase 20% da população, mas parece que não existimos. Desde o hino da cidade até as propagandas, raramente aparecem negros. Parece que o mundo aqui é só branco.” Isso se reflete até no incentivo às atividades culturais e festivas da população afro-brasileira. “O Carnaval está resistindo a duras penas”, observa.

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História de resistência e de denúncia

O 13 de maio não deve ser menosprezado, não deve ser esquecido e muito menos lido como uma benevolência da princesa Isabel, mas sim como o resultado de um movimento social que alcançou amplamente a sociedade brasileira no final do século 19. Essa é a avaliação de Mozart Linhares da Silva, doutor em História, professor da Unisc e coordenador do grupo de pesquisa Identidade e Diferença na Educação e do Observatório de Educação e Biopolítica. Para ele, o processo de abolição aponta para uma história de intensas lutas na mesma medida em que denuncia o “conservadorismo perverso” das elites da época.

Mozart: “Não deve ser menosprezado”

“É preciso revisitar o contexto da abolição constantemente para entender a matriz conservadora que ainda nos orienta enquanto sociedade do atraso”, comenta. Para o historiador, a Lei Imperial no 3.353, ou Lei Áurea, marcou o fim de “um processo longo de lutas contra o sistema escravocrata, sobretudo travado pela população escravizada que sempre resistiu a ele, lançando mão dos mais variados meios, como as revoltas de senzala, fuga para quilombos e assassinatos de senhores escravistas”.

O Brasil foi o último país das Américas a acabar com a escravidão, o que demonstra a força da resistência conservadora na época. E, para que isso acontecesse, foi necessário atender às exigências feitas pela elite escravista. Uma delas foi a reivindicação por indenizações pelos escravos que seriam perdidos com a abolição. “Lançando mão do conceito de propriedade, lia-se o processo abolicionista como um desrespeito ao princípio fundamental da propriedade privada. E, de fato, essa elite escravocrata foi indenizada, o que pouco se comenta”, observa Mozart.

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