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A vida e a morte

A pandemia incorporou a morte à nossa rotina. Em especial nas últimas semanas, é difícil passar muitos dias sem se ter notícia de algum conhecido que foi levado por essa tragédia. O número crescente de óbitos causados pelo vírus, que já é superior ao de alguns dos maiores desastres da humanidade, gera a sensação de que a morte nos espreita. E que a qualquer momento pode dar o bote.

Essa convivência íntima me fez perceber o quanto ela, a morte, nos impõe respeito, o que se nota pela forma cortês como costumamos tratar as pessoas que já se foram. Quem morre nunca é alvo de piadas, críticas ou insultos, ao menos de forma pública. Há um código social muito bem estabelecido segundo o qual é preciso consideração com os falecidos, independentemente de quem sejam. Com isso, mesmo quando eventualmente não gostamos de uma pessoa, tratamos de nos conter quando ela parte. Igualmente, se alguém falha, é severamente reprimido.

Isso fica muito visível, por exemplo, quando morre um político. Até os seus mais ferrenhos adversários desarmam-se imediatamente e correm para expressar admirações e exaltar qualidades às quais jamais haviam feito menção enquanto o sujeito ainda estava neste plano. Basta o outro dar o último suspiro e todos são tomados por um surto de civilidade e diplomacia. É como dizia Noel Rosa em Fita amarela, samba no qual projeta seu passamento: “Meus inimigos que hoje falam mal de mim, vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim”.

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Há um fundamento, claro, em toda essa etiqueta. Primeiro, deve-se respeitar o luto de familiares e/ou pessoas próximas. Depois, é covardia atacar alguém que já não pode mais se defender. Mas talvez pela fatalidade e irreversibilidade da morte, somos capazes de enterrar mágoas e ressentimentos junto com os cadáveres, e ficar apenas com as boas lembranças. No mínimo, nos permitimos umas palavras de deferência.

A questão é: se temos maturidade o suficiente para reconhecer méritos e sermos empáticos até com uma pessoa com quem não simpatizamos, e de deixarmos para trás os problemas que nos afastam quando ela morre, por que não fazemos isso enquanto ela ainda está aqui? Ainda mais nesses tempos de extremismos e histeria que vivemos, em que gastamos tanta energia em discussões estéreis, em que o contraditório é tratado como um indício de inferioridade ou perigo e o preconceito e a ignorância não causam mais qualquer constrangimento, pense o quanto tudo poderia ser mais fácil se tivéssemos essa grandeza o tempo todo.

Talvez o que esteja nos faltando é ter tanto respeito pela vida quanto temos pela morte. Se assim fosse, é possível que hoje não estivéssemos assistindo a essa contabilidade macabra de vítimas dia após dia. Não ouviríamos o grito insano dos negacionistas e não precisaríamos implorar para alguém vestir uma máscara na calçada, caso nos sobrasse solidariedade. E as UTIs não estariam lotadas, não estaríamos correndo desesperados atrás de vacinas e o medo não estaria estampado no semblante de todos.

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O grande Nelson Cavaquinho pedia, em seu samba (sim, mais um) Quando eu me chamar saudade, para que os amigos não esperassem sua partida para lhe enviarem flores e carinho. E que, quando a maldita chegasse, bastariam preces e nada mais. “Se alguém quiser fazer por mim, que faça agora”, cantava ele. Nesse momento em que enxergamos morte por todos os lados, precisamos mais do que nunca de amor à vida – a nossa e as dos outros.

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