A vida da família afegã refugiada em Santa Cruz

Em 11 de abril, Santa Cruz do Sul tornou-se a primeira cidade gaúcha a receber refugiados afegãos. Desde então, a família de quatro pessoas, formada por duas primas, de 27 e 35 anos, e pelo casal de filhos adolescentes de uma delas, reside em um apartamento e se adapta à nova realidade. Os jovens estão estudando, e todos estão aprendendo a falar português. Agora, pouco menos de um mês depois da chegada, elas estão prontas para começar a trabalhar.

A Gazeta do Sul conversou com exclusividade com as duas primas (os adolescentes estavam em horário de aula), no apartamento em que residem. Estavam acompanhadas da coordenadora do Escritório de Defesa da Mulher e da Casa de Passagem, Janaína Freitas de Oliveira. A mais velha, de 35 anos, e mãe dos jovens, oferece chá e biscoitos. Falante nativa de farsi e a que melhor domina o inglês, assume o papel de porta-voz da família. Ela comenta que o clima é muito bom, com noites frias, e que é muito parecido com as temperaturas em Cabul. A comida local também é considerada boa pela família, com a evidente exceção do feijão-preto. “A maioria das coisas que usamos no Afeganistão são as mesmas daqui. As frutas frescas são muito diferentes. Tem muitas frutas novas.”

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A adaptação tem sido facilitada por um grupo de apoiadores: além de Janaína, o filho dela, Matheus; Aline Kluge e o advogado e professor Ricardo Hermany. Quando vão ao mercado, as afegãs contam com a ajuda dos amigos locais. A anfitriã convida para conhecer o apartamento de quatro dormitórios, mostrando cada quarto e os pertences da família. “Recomeçamos a vida do zero. Faltam algumas coisas para o apartamento, mas no dia a dia vamos comprar”, diz. Outra coisa que notou foi a curiosidade e a surpresa das pessoas ao perceberem que as mulheres da família usam o véu islâmico.

O Afeganistão esteve sob domínio do regime extremista do Talibã de 1996 a 2001, quando o grupo foi derrotado. Em 2004, o país ganhou nova constituição, mas o governo teve dificuldade no trabalho de unificação. Em agosto do ano passado, a retirada das tropas americanas que garantiam a segurança no país levou ao retorno do Talibã à capital e controle das principais cidades afegãs. “Não era a hora de as forças americanas deixarem o Afeganistão, porque sabiam sobre o Talibã, e agora todo o país foi tomado. Eles sabiam que tudo ficaria pior.” A família que veio para Santa Cruz residia em Cabul, a capital com 3,5 mil anos, que pertenceu a diversos impérios ao longo da história e possui 4 milhões de habitantes.

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Agora, o que falta é um emprego para ambas

As duas primas são advogadas, especializadas em direitos humanos e militantes pelos direitos das mulheres, e trabalhavam junto ao governo afegão anterior à tomada do poder. O grupo é especialmente perigoso para as mulheres, que são proibidas de estudar, ter posses e dinheiro, trabalhar fora de casa e até mesmo sair sem a companhia de um homem. “A situação, quando o Talibã chegou, era muito perigosa. Eles sabiam sobre mim porque eu estava escrevendo sobre os casos em que ajudei famílias, e muitas mulheres vinham até mim pedir ajuda para se divorciar.” Antes de o regime voltar ao poder, as mulheres podiam trabalhar fora, eram juízas e advogadas, mas, segundo ela, agora tudo isso foi perdido e está piorando a cada dia.

Emocionada, ela lembra do lar que foi obrigada a deixar para trás, uma casa grande e confortável. Na fuga, os quatro membros da família trouxeram apenas roupas, itens de primeira necessidade e alguns livros. Apesar de se sentir em segurança e aliviada porque os filhos estão salvos, ao ser perguntada sobre se sente falta de casa, responde com voz embargada: “Sim, todos os dias. Escrevo para lá todos os dias, amo tudo no Afeganistão: o clima, a comida, as pessoas. É um ótimo país, com pessoas boas, um país muito pobre com história muito rica e que agora está numa situação muito ruim”, disse.

Após o grupo tomar o poder, poderia ter sido presa, já que membros do Talibã foram até sua residência mais de uma vez perguntando por ela, e solicitando seus documentos. Após cerca de quatro meses escondida na casa de amigos e familiares, uma viagem até o Paquistão foi organizada através de contato com a ONG Panahgah, e os vistos brasileiros foram obtidos. Em São Paulo, a família passou por 40 dias de quarentena antes de vir a Santa Cruz. A primeira impressão foi de uma cidade pequena e muito verde, mas muito bonita. Eles já visitaram os pontos turísticos, como a Cruz, o Parque da Gruta e a Catedral São João Batista, que impressionou pelo tamanho.

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“Tenho de agradecer muito por esse novo começo de vida.” Exaltando a gentileza dos santa-cruzenses e o quanto ajudaram sua família, frisa que a única coisa que falta agora é um emprego para ela e a prima. As duas já fizeram entrevistas, mas não foram contratadas por nenhuma empresa. A preferência é por um ambiente onde possam falar em inglês, e em que possam trabalhar juntas. Interessados em ajudar ou oferecer vagas podem entrar em contato com Janaína, pelo fone 99723 4871.

A afegã mostra as fotos dos filhos no celular e permite uma foto na sala da nova casa, mostrando a bandeira do país. Na despedida, reforça o pedido por um emprego e abre a porta, pois já aprendeu que é um costume brasileiro abrir a porta para que o visitante retorne.

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Pedido de sigilo

Como as duas advogadas ainda têm familiares no Afeganistão, preocupam-se, ao conceder entrevistas, com a possibilidade de ser identificadas e que isso faça os parentes sofrerem represálias do Talibã. Por essa razão, pediram para que seus nomes e imagens não fossem divulgados.

Onde fica

Situado no centro da Ásia, o Afeganistão tem como capital Cabul, uma cidade com mais de 3,5 mil anos de história e que hoje tem em torno de 4 milhões de habitantes

Adolescentes já estudam no Colégio Mauá

A mãe dos adolescentes ressaltou com orgulho que eles estão matriculados no Colégio Mauá. “Eu me preocupo muito com meus filhos, porque no Afeganistão, quando o Talibã esteve no poder, as meninas não tinham mais o direito de ir para a escola. Agora meus filhos estão estudando, e estou muito feliz.”

Segundo ela, os dois jovens gostam muito da escola, principalmente porque oferece atividades que vão além das aulas, e já estão fazendo novos amigos. A mãe comenta ainda a diferença entre os professores brasileiros, que são muito gentis, e os do Afeganistão, que são extremamente rígidos.

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O menino está no 8º ano e, apesar de ter jogado críquete no Afeganistão, está empolgado para praticar futebol no Brasil. Já a jovem de 15 anos é aluna do 9º ano, e está jogando vôlei e basquete. Mais tarde, ambos pretendem se formar na Universidade de Santa Cruz do Sul, ele em Engenharia Civil, ela em Ciência da Computação. Ainda que a situação melhore em seu país de origem, e a mãe volte para visitar os familiares, os jovens pretendem continuar no Brasil.

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A família toda estuda diariamente, especialmente o novo idioma. A rotina começa cedo; a primeira oração do dia é às 6 horas. Após o café, e depois de os filhos irem para a aula, a mãe e a prima fazem alongamentos, tomam chá, limpam a casa, preparam o almoço e aguardam o retorno dos jovens ao meio-dia.

Após a refeição, a família reza; às vezes dormem ou vão ao parque; os filhos fazem os deveres escolares e a família toda assiste a um filme com áudio em português e legendas em inglês, para treinar. Depois, estudam mais duas horas do idioma, com a ajuda da filha. Os adolescentes aprendem a língua mais rápido por causa da escola; as duas mulheres estudam na Skylimit Idiomas duas vezes por semana. Já arranham saudações e os nomes de alguns alimentos.

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