Colunistas

A queda e a omissão

Um autor que li muito foi o franco-argelino Albert Camus. Livros como O estrangeiro, O mito de Sísifo, A peste e O homem revoltado me impressionaram e fizeram com que eu o admirasse. Foi como se, em determinado momento, ele passasse a funcionar como uma “voz da consciência”.

Camus voltou ao debate contemporâneo há alguns anos, com a eclosão da pandemia. O romance A peste foi uma das referências literárias para tentar compreender aquele momento. E entre todos os personagens que lutam contra a praga mortífera na cidade de Oran, destaca-se o doutor Rieux. O médico dedica-se a salvar o máximo possível de vidas, pois entende que esse é o seu dever. Uma postura ética que, no fim das contas, terminei por associar ao escritor. Afinal, alguém capaz de criar figuras tão nobres não poderia ser diferente.

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Ou poderia? Quase dez anos após a publicação de A peste, Camus lançou outro romance, em 1956, A queda. Nas pouco mais de cem páginas, o “herói”, o advogado Jean-Baptiste Clemence, conversa com alguém em uma mesa de bar e faz confissões vergonhosas. Ele não economiza palavras para rebaixar a si mesmo.

A questão é que, durante toda sua vida, Clemence sempre teve uma autoestima elevada, a melhor opinião a seu respeito. Para si e aos olhos de outros, era um homem bom. De repente, no entanto, passou a reexaminar sua conduta. Por exemplo, os gestos altruístas. “Quando deixava um cego sobre a calçada onde eu o tinha ajudado a ficar, saudava-o. Evidentemente, esse cumprimento não lhe era destinado, ele não podia ver. A quem, pois, se dirigia? Ao público.”

Esses questionamentos começaram após certa noite, sombria e sem plateia, em que ele soube. Clemence presencia um fato trágico, um suicídio. Uma jovem se joga da ponte, grita alguns instantes antes do afogamento, e ele nada faz para salvá-la. Decide ignorá-la. E vai carregar esse arrependimento pelo resto da vida.

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Um escritor é e não é seus personagens. Mas o melhor, sempre, é não fantasiar. Buscar um Rieux onde talvez só haja um omisso Clemence. “Eu sou como aquele velho mendigo que não queria largar minha mão, um dia, no terraço de um café: ‘Ah, meu caro senhor’, dizia ele, ‘não é que se seja mau, mas perde-se a luz.’”

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Guilherme Bica

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