No ano passado, a editora Companhia das Letras lançou a Enciclopédia negra, uma compilação de 416 verbetes biográficos que resgatam a trajetória de personalidades afro-descendentes da história do Brasil. Em meio a nomes célebres, como Zumbi dos Palmares, a compositora Chiquinha Gonzaga, o escritor Abdias do Nascimento e outros, o leitor encontra figuras desconhecidas do grande público. E uma delas, por incrível que pareça, viveu boa parte de sua longa vida em Santa Cruz do Sul. Trata-se de Inácia Garcia de Souza, conhecida como Tia Inácia. Ela nasceu escrava, em Rio Pardo, e morreu em 1956 – ao que tudo indica, com espantosos 131 anos de idade.
Em Santa Cruz do Sul, Tia Inácia morava no Bairro Bom Jesus, em um casebre de duas peças que a Prefeitura lhe entregara. Vivia sozinha e costumava receber doações de roupas e alimentos do poder público, de entidades e moradores. No dia 1º de junho de 1954, ela foi tema de uma reportagem especial publicada na Gazeta do Sul (então “Gazeta de Santa Cruz”), assinada por ninguém menos que o fundador do jornal, Francisco José Frantz. O título chamava a atenção: “Tia Inácia no dia 24 completará 129 anos”. Exatamente na data de São João.
“Tia Inácia é bastante conhecida pelas gerações mais antigas. A mãe do autor destas linhas já a conhecia há mais de 50 anos”, escreve Frantz na abertura. Demonstrando lucidez e boa memória, a ex-escrava contou-lhe episódios dos tempos da escravidão, da abolição, da Guerra do Paraguai e da Revolução Federalista. Falou também sobre seu cotidiano em Rio Pardo, onde era cativa de uma mulher chamada Jacinta. Segundo Inácia, Jacinta teria sido uma “boa senhora” que, após sua morte, deixou terras para escravos e libertos.
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Mas, além disso, a ex-escravizada guardava na memória a violência dos castigos físicos que testemunhou. “Havia também muita gente que era ruim como a peste para com os seus escravos. O velho Mathias, proprietário de muitos escravos, era tão ruim que morreu de raiva quando veio a notícia da libertação.” Os enforcamentos eram uma prática frequente. Os condenados eram obrigados a entoar uma canção para “dar respeito” ao povo que assistia às execuções. A letra dizia: “Quem tiver filhos, que lhes dê educação, para depois não darem dor no coração. Se minha mãe me desse surra quando eu merecia, hoje não estaria nessa agonia. Sexta-feira, hora de missa, aperta carrasco e me entrega à justiça”.
O dia da abolição, 13 de maio de 1888, era uma recordação nítida e feliz. “Foi uma cousa louca, meu senhor, a festa que houve em Rio Pardo no dia que veio a notícia da libertação”, contou ao jornalista. Tia Inácia teve filhos, netos, bisnetos e tetranetos. Todos faleceram antes dela, “um depois do outro e eu ficando sempre”. Até a sua morte, em maio de 1956.
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“Inácia Garcia de Souza resistiu ao tempo e à memória.” Assim começa o verbete dedicado à ex-escrava rio-pardense, na página 546 da Enciclopédia negra, livro que tem como organizadores a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, o historiador Flávio dos Santos Gomes e o artista visual Jaime Lauriano. A fonte principal dos pesquisadores, nesse caso, é justamente a matéria publicada na Gazeta do Sul em junho de 1954.
Tia Inácia teria nascido em 1825. Os autores da Enciclopédia são cautelosos em relação à exatidão dessa data. Francisco Frantz, no entanto, não tinha dúvidas quanto ao dia de nascimento e à surpreendente longevidade da mulher. Em sua matéria, o jornalista afirma que “ficou certo pela documentação que dirimiu quaisquer dúvidas que ainda poderiam existir quanto à sua idade”. A curiosidade em torno dessa questão era grande na época. Muitos simplesmente não acreditavam.
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Também em 1954, o Jornal de Rio Pardo publicou reportagem que contribuiu para, se não eliminar, pelo menos enfraquecer as dúvidas. Segundo o texto, uma certidão de óbito confirmava que a irmã de Inácia, Senhorinha de Souza, havia falecido em 25 de novembro de 1952, aos 116 anos. Documentos atestavam que Senhorinha aparecia no registro de escravos em Rio Pardo como menor de idade, enquanto Inácia já era maior.
Por ocasião das comemorações alusivas ao Treze de Maio no ano de 1954, em Rio Pardo, Tia Inácia recebeu diversas homenagens do poder público, de escolas e entidades. Conforme se noticiou, ganhou dezenas de presentes. O deputado Ernesto Protásio Wunderlich, presidente do Círculo Operário Riopardense, ofereceu um almoço para a ex-escrava. A história de Tia Inácia já foi tema de coluna do jornalista José Augusto Borowsky na Gazeta do Sul, em novembro de 2018.
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Segundo a Enciclopédia negra, Tia Inácia não foi um caso isolado de longevidade. Muitos negros libertados em 1888, ou antes, ainda viviam em meados do século 20. “Sabe-se que, em diversas áreas de colonização alemã do interior do Rio Grande, há relatos de negros, quase centenários, como Orlando, Adão, Lucas, Militão, em São Leopoldo e em outras partes”, diz trecho do livro.
Publicada em março do ano passado pela Companhia das Letras, a Enciclopédia negra apresenta-se como uma obra de resgate da cultura afro-brasileira e de contraposição ao pensamento racista. O livro assinala a contribuição de importantes personalidades no Brasil ao longo dos últimos 400 anos, privilegiando o amplo período da escravidão e do pós-abolição.
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A publicação reúne 416 verbetes biográficos, individuais e coletivos. E entre alguns nomes conhecidos dentro e fora do País, figura Tia Inácia, a que teve uma vida humilde em seu casebre no Bom Jesus.
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