Já escrevi em colunas anteriores que o período de isolamento tem levado as gurias lá de casa a descobertas bem interessantes, por conta de pesquisas arqueológicas nos baús de brinquedos. Às vésperas desse último fim de semana, as marotas desenterraram um verdadeiro tesouro: uma caixa de sapatos recheada com carros da Hot Wheels, que o irmão mais velho, hoje adolescente, acumulara ao longo da infância. Em instantes, já estavam hipnotizadas pelo colorido dos carrinhos, fascinadas pelas linhas aerodinâmicas dos modelos, impressionadas pela velocidade que desenvolvem quando empurrados. E, como eu temia, no minuto seguinte vieram com um pedido:
– Pai, constrói pra gente uma pista de corrida? Pode ser de madeira mesmo…
Topei a empreitada, com uma condição: todas teriam de me ajudar. A construção, obviamente, envolveria o manejo do martelo e da perigosa serra circular manual. Ou seja, na prática, não restaria muita ocupação para as crianças, além de me alcançarem pedaços de madeira e sacos de pregos. E, principalmente, de observarem. Imaginei que tal observação seria pedagógica, ao demonstrar para a turminha a importância da persistência para não deixar determinadas tarefas pela metade.
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Afinal, desde o início previ que seria um projeto bem complicado, principalmente para mim, que não tive aulas de marcenaria ou de engenharia de tráfego na graduação em Jornalismo, tampouco no mestrado em Letras. A construção da pista envolveria, primeiro, fazer canaletas dentro das quais os carrinhos deslizariam, cavaletes de diferentes alturas, para deixar a pista inclinada e forçar os carros a descer; e o mais difícil: curvas.
– Vai ter curvas, né, pai? – insistiu a caçula, Ágatha. – Uma pista sem curvas não tem graça…
– Poxa, filha. Ainda não sei como fazer curvas em madeira…
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– Sei que tu consegue!
A solução foi ir serrando e emendando pedacinhos de madeira, bem devagarinho, para formar arcos. A parte mais difícil foi fixar os guard-rails, fundamentais para forçar os carrinhos a virar nas curvas. Por vezes, as chapinhas de pinus não suportavam os pregos e rachavam, forçando o recomeço de parte da operação. Deu muita vontade de desistir e transformar todos aqueles cacos de madeira em uma grande fogueira. Mas as crianças estavam olhando…
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Na zona rural que circunda Santa Cruz do Sul há uma expressão utilizada para designar os muito teimosos: mula kopf, ou cabeça de mula, na mistura do português com alemão. Por vezes, o mula kopf é chato e intransigente, do tipo que não abre mão de suas decisões, tampouco aceita opiniões alheias.
– Sabes como convencer oito mula köpfe a acomodarem-se dentro de um Fusca? – perguntaram-me, certa feita.
– Como?
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– É só dizer que não cabem todos!
O mula kopf é assim mesmo. Quando lhe dizem que algo não dará certo, é aí que o teimoso vai e faz, só de birra. Contudo, muitas vezes acaba, realmente, dando certo. Então, o mula kopf faz questão de alardear seu feito diante dos céticos. E demonstra que tem, pelo menos, uma grande virtude: a persistência.
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Meio mula kopf que sou, contrariei todas as possibilidades e, enfim, concluí a pista ao cabo da tarde de domingo, para delírio das gurias. As provas avançaram pela noite e, no período, a estrutura foi sendo adaptada para possibilitar que, além de correr, os carros dessem rasantes ao final do percurso. E não tardou até Ágatha descobrir que determinado modelo, um muscle car vermelho, corria e levantava voo mais rápido que os outros. As irmãs, contudo, também perceberam a vantagem e propuseram o compartilhamento do auto.
– Nada disso! – discordou Ágatha. – Eu vi esse primeiro!
– Ah, mas que guria cabeçuda – ralhou a Isadora. – De quem puxou toda essa teimosia?
E eu, que a tudo observava, engoli em seco.
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