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A paisagem de Santa Cruz como matéria-prima para a arte

Em movimento global, cidades referenciais no mundo da arte e da cultura registram a iniciativa de artistas de variadas áreas que se empenham em eternizar instantes ou situações do cotidiano. Com isso, a paisagem urbana é fixada em telas, a partir dos mais diversos estilos, suportes e processos criativos.

Inspiradas nesse modelo, a Gazeta do Sul e a Associação Pró-Cultura de Santa Cruz do Sul, mantenedora da Casa das Artes Regina Simonis, estabeleceram uma parceria que resulta na série Desenha Santa Cruz. Com estreia nesta edição, uma vez por mês um artista identificado com Santa Cruz é convidado a descortinar um olhar impressivo sobre a cidade. Deve eleger cinco situações e fixá-las em obra inédita.

A Gazeta do Sul publicará de forma exclusiva esse conjunto, e posteriormente a ação terá continuidade em nova etapa na parceria com a Associação Pró-Cultura. O primeiro artista convidado é o chargista e ilustrador Fernando de Barros, da Gazeta do Sul. Ele elaborou as quatro obras que ilustram essa matéria, sendo que a quinta (centrada na Catedral) é a que emoldura a capa desta edição.

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Olhar afetuoso sobre a urbanidade

Há 24 anos, é do rio-pardense Cleito Fernando Silveira de Barros a missão diária de traduzir fatos, temas, assuntos e acontecimentos associados ao ambiente socioeconômico e cultural de Santa Cruz do Sul e da região na charge publicada na página 2 da Gazeta do Sul. Nessa condição, poucas pessoas, nas mais diferentes áreas profissionais, têm um olhar de tal forma atualizado, panorâmico e impressivo sobre a realidade circundante. Aos 53 anos, esse canceriano nascido em 28 de junho viu a habilidade ou o dom do traço, do desenho, surgir de forma completamente autodidata.

Fernando de Barros, chargista da Gazeta | Foto: Alencar da Rosa

Diz recordar que, ainda criança, no tempo de escola, o gosto por desenhar lhe veio ao natural. E assim seguiu ao longo da adolescência, entre a leitura de gibis de personagens como Zé Colmeia, Pantera Cor-de-Rosa, Os Flintstones, e, obviamente, os desenhos animados na TV. “Mas na época não me passava pela cabeça fazer disso atividade profissional. Era um hobby”, recorda. No entanto, os primeiros pedidos para alguma peça surgiam, na publicidade. Quando viu, desenhar virou rotina.

E assim, por volta do ano 2000, depois de passagens por outros jornais, chegou à Gazeta do Sul. Além da charge e das ilustrações, cumpriu e ainda cumpre tarefas de cunho publicitário, elabora infográficos, mapas dos mais variados motivos e situações que resultaram, por exemplo, em artes especiais e exclusivas para capas das edições do jornal.

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Com esse envolvimento e a proximidade com a Gazeta do Sul, foi igualmente natural que fosse feito a ele o convite para estrear a nova série, Desenha Santa Cruz. A proposta é que artistas elaborem cinco obras inéditas e exclusivas a partir de um olhar pessoal, impressivo, sobre o ambiente urbano de Santa Cruz.

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Fernando Barros refere que, obviamente, conhecia os cinco locais e os cinco elementos que elegeu para a sua participação na série. Mas selecionar um ângulo ou um ponto de vista deles fez com que os olhasse de forma bem diferente, como diz. “Acabei percebendo coisas, detalhes, aspectos que escapam a quem os aprecia de mais longe, ou sem essa preocupação de traduzir em arte o que se vê”, comenta ele, que mora em sua cidade natal e se deslocou a Santa Cruz especialmente para elaborar essas peças, em visita realizada no início de fevereiro, ainda antes do Carnaval.

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Em termos de estilo ou proposta, menciona que optou por uma espécie de colagem, misturando diferentes elementos. Há uma camada que remete à fotografia do motivo propriamente dito, e sobre ela ocorre a pintura ou o desenho. Além disso, introduziu situações estranhas, como o céu em tons ou formas diferentes do que verificou na visita.

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Para completar, agrega texturas, como as bordas arranhadas ou com ranhuras, remetendo a ambiente ou registro antigo. Em tempos dominados pelas ferramentas do digital, ele se diz da “velha escola” que prefere o desenho no papel, com grafite (ou apelando para a borracha, quando necessário) e a exploração clássica das cores e das formas. É essa proposta, portanto, que Fernando traz para a estreia dessa nova série, Desenha Santa Cruz. Com vocês, Fernando Barros!

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A espiritualidade do Morro da Cruz

Em sua seleção de locais ou ambientes do espaço urbano de Santa Cruz do Sul para transformá-los em arte, Fernando prontamente se decidiu pelo Parque da Santa Cruz, que, afinal, homenageia a comunidade. O artista salienta que já conhecia o chamado Morro da Cruz, onde foi erguida a Cruz, em alusão ao símbolo e ao nome da cidade. Esse parque, na região sudeste do núcleo urbano, está localizado onde ficava uma antiga pedreira, então já desativada, denominada de Monte Verde.

O parque, com a Cruz de 20 metros de altura, iluminada com neon, visível dos mais variados pontos da cidade e de vários outros locais na região, e com seus demais atrativos, foi inaugurado em novembro de 1996. Ao todo, são 12 hectares, nos quais ficam também paredões de 40 metros de altura, formados por três tipos de rocha, estimados como tendo 60 milhões de anos: basalto, arenito e buxito. A recuperação ambiental da antiga pedreira coube ao renomado ambientalista José Lutzenberger. Diversos eventos e atividades artísticas, de lazer ou esportivas costumam ser realizadas no local, como rapel, escalada e shows musicais. Mais recentemente, o complexo ganhou um restaurante panorâmico, que ainda não entrou em funcionamento.

Em sua visita ao local, em fevereiro, Fernando comenta que ficou impactado tanto pela imponência do conjunto quanto pela ambiência toda. “Fazia muito tempo que não havia mais ido até o morro. Por isso, agora, ao rever a Cruz e o novo aspecto do parque, fiquei muito bem impressionado.” Ele cita que buscou visualizar a Cruz, símbolo do município, focando em primeiro plano algumas das pedras do que, afinal, foi a antiga pedreira. “Assim, agachei-me, e é a partir desse ângulo, próximo ao chão, que miro o conjunto”.

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Frisa que as pedras que aparecem são bem pequenas, mas se afiguram com grandiosidade na obra. As nuvens são um acréscimo, uma licença poética do artista, bem como a auréola sugestiva na Cruz, que evidencia a representatividade religiosa, elemento que foi também escolha ou decisão do artista de acrescentar ao conjunto. E, claro, arrematou com uma série de texturas.

A estação que hoje acolhe a cultura

Se o passeio de Fernando Barros em seu olhar impressivo de artista sobre Santa Cruz se iniciou no Parque da Santa Cruz, a parada seguinte foi a antiga Estação Férrea. Afinal, foi sobre os trilhos que ligavam a cidade ao ramal de Ramiz Galvão, próximo a Rio Pardo, terra natal de Fernando (e de lá permitiam o acesso ao grande mundo), que as riquezas locais eram escoadas, ou que a população se deslocava a fim de cuidar de seus interesses e de suas demandas em outras paragens.

Longamente acalentada e almejada, desde quando Santa Cruz emancipou-se de Rio Pardo, em 28 de setembro de 1878, a ligação ferroviária finalmente foi inaugurada em 15 de novembro de 1905. Desde então, a cidade estava conectada à principal via de deslocamento ou de escoamento da época: a partir de Ramiz Galvão, o ramal ligava-se à ferrovia que ia de Porto Alegre a Uruguaiana, interligando a capital e a fronteira oeste.

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Especialmente em meados do século 20, o modal de transporte foi gradativamente migrando do ferroviário e do fluvial para o rodoviário. Com isso, o trem deixou de circular em muitos espaços, e a Estação Férrea de Santa Cruz acabou desativada em 1965. Já em 1978 uma campanha começou a defender a revitalização do prédio e do terreno. Finalmente, em 1987, a construção, que já era de propriedade da Prefeitura, tornou-se Centro de Cultura Jornalista Francisco José Frantz, homenageando o fundador da Gazeta Grupo de Comunicações. Até os dias atuais, sedia importantes eventos e atividades artísticas.

Em sua visita ao local, Fernando buscou o ângulo que justamente colocasse em primeiro plano a locomotiva Mikado de 40 toneladas que hoje está nesse nicho, onde foi “estacionada” em 2015. O artista diz ter identificado uma série de detalhes, que buscou eternizar em desenho. Ao mesmo tempo, no plano de fundo está o prédio, com a identificação de “Santa Cruz”. Privilegiou ainda a grama verde. O céu foi composto com texturas, bem como elementos de colagens (ou descolagens) e pinceladas, que mesclam atualidade e passado, remetendo ao longevo que resiste ao tempo.

O momento que celebra o passado

Em um ano no qual, simultaneamente, transcorrem os 200 anos desde a chegada dos primeiros imigrantes alemães ao Rio Grande do Sul, em 1824, em São Leopoldo, e os 175 anos de início da Colônia de Santa Cruz, o que se deu em 19 de dezembro de 1849, o elemento germânico não poderia deixar de ser contemplado pelo artista Fernando Barros. Na rua principal da cidade, na Marechal Floriano, confluência com a Galvão Costa, deparou-se com o Monumento ao Imigrante.

Trata-se de um conjunto artístico inaugurado em 25 de janeiro de 1969 (no ano em que iriam transcorrer os 120 anos desde a implantação da colônia) e que homenageia os germânicos que tomaram a decisão de partir rumo ao distante Rio Grande do Sul, no Sul do Brasil. O painel em mosaico mede 11 metros de largura por três de altura e é composto por centenas de cados de ladrilhos, por sua vez trabalhados com torquês e esmeril. O monumento foi criado pelo desenhista santa-cruzense Hildo Müller. Nele constam, além do ano de instalação da colônia, o nome dos primeiros colonizadores.

Fernando ressalta que, em seu olhar, privilegiou justamente o imigrante em seu pedestal, posicionado em primeiro plano, e com o olhar que abarca o horizonte, que seria então a paisagem regional a ser conquistada, ocupada. “Ele aparece imponente, e com isso traduz esse ímpeto ou determinação de iniciar ou de construir uma grande obra, que resultou na Santa Cruz do Sul de hoje, tanto o ambiente do meio rural, da colônia original, dedicada à agricultura, quanto a cidade, quando se demarcou o espaço urbano”, comenta Fernando.

Novamente, a exemplo do que já fizera na Cruz, ele optou por colocar uma auréola, que pode ser o sol ou outro astro, como pano de fundo desse imigrante, salientando-o. E outros elementos foram destacados, como ramos, e ainda parcela dos motivos do próprio painel. As colagens, as texturas e as ranhuras, tanto nas bordas quanto sobre o próprio desenho, são recursos que promovem diálogo ou inter-relação dessa obra com as demais da série.

Monumento da Liberdade, na praça

Outra parada de Fernando em seu passeio impressivo na área central de Santa Cruz do Sul foi a icônica Praça da Bandeira. Afinal, é a sede do poder, símbolo da emancipação local e ambiente por excelência a traduzir o espaço democrático. Ali ele centrou o olhar no emblemático Monumento da Liberdade, relacionado com as celebrações do centenário da Independência do Brasil, em 1922.

No centro da praça está localizado o Palacinho, a sede do Poder Executivo. Construído em estilo neoclássico, remete a antigas formas dos templos gregos. Foi edificado para ser a sede da Câmara Municipal, na então chamada Praça do Carvalho. A obra foi concluída em 30 de julho de 1889, meses antes de ocorrer a Proclamação da República.

Mas Fernando optou por nem contemplar o Palacinho em sua arte, uma vez que ele fica oculto no contexto. Seu olhar concentra-se no Monumento da Liberdade, que traz uma mulher em pose na qual ergue um archote com a mão direita e ostenta uma bandeira na mão esquerda. A pedra fundamental do monumento foi lançada em 1º de setembro de 1922, pelo intendente Gaspar Bartholomay. A criação da obra coube ao escultor italiano Giuseppe Gaudenzi, professor da Escola de Engenharia de Porto Alegre, e a execução ficou a cargo do Atelier de Esculturas e Galvanoplastia de João Vicente Friederich, da Capital, com fusão em bronze. Após dois anos de elaboração, a inauguração ocorreu em 7 de setembro de 1924.

Fernando ressalta que buscou enfatizar a imponência da estátua, em seu simbolismo de liberdade e democracia, e preservou os nomes dos personagens elencados como os heróis que lutaram pela independência. Essa relação aparece como uma colagem, ou um grafite, em pano de fundo, sobre céu em tons cinza, rasurado. Mais uma vez, em torno da tocha uma auréola agrega a luz, o brilho, que ilumina, inspira e promove a reflexão no espectador. Detalhes e colagens à maneira de fitas adesivas completam a obra, que apresenta as mesmas ranhuras ou texturas usadas por Fernando em toda a série, como elemento recorrente e que cria um elo entre elas.

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Romar Behling

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Romar Behling

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