Santa Cruz do Sul

A odisseia da família Schmidt da Turíngia, na Alemanha, para Linha Dona Josefa

A história da imigração alemã para o Brasil implicou em projetos oficiais, empreendimentos e relações de negócio. Mas, em cada momento, envolveu vidas, alterando para sempre o cenário de famílias na medida em que membros deixavam a Europa para começar tudo de novo na América. É a história de um desses clãs que um livro de autoria do santa-cruzense Luciano Schmidt ilumina: A família de Johann Andreas Schmidt e Anna Margaretha Althaus e a história de sua filha Emilie: emigração da Turíngia para a Colônia de Santa Cruz foi editado pela Oikos, em 2020. E um segundo volume deve ser lançado em breve.

Como o título sugere, ao mencionar a filha Emilie, é a ela que o olhar de Luciano mais se volta. Ele descende dessa alemã que, chegando ao Brasil já viúva e com cinco filhos para criar, acaba em Dona Josefa e ali, ao longo de mais de quatro décadas, refaz a sua vida. Simbolicamente, a odisseia de Emilie é
a história de muitos.

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A história da imigração alemã para o Sul do Brasil, especialmente ao longo do século 19, envolveu enredos e peripécias que renderiam muitos romances. De fato, em quase todos os casos, a viagem e o recomeço em uma terra estranha implicavam em superação e desafios que jamais cessavam. Mas até como romance a jornada protagonizada pela alemã Johanne Alwine Emilie Schmidt pareceria inverossímil, de tão fora da curva, como se costuma dizer.

Não por acaso, em um esforço de um descendente para compor a árvore genealógica e resgatar fatos de antepassados, o foco, que seria fixado num primeiro momento no ramo de seu tataravô, acabou quase que naturalmente se dirigindo para a tataravó. Ocorre que, por coincidência, ambos tinham o sobrenome Schmidt. E quem se encarregou de fixar essa memória em livro foi o tataraneto Luciano Schmidt, santa-cruzense hoje com 49 anos.

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O resultado pode ser conferido, com impressão muito intensa, em leitura altamente informativa, na obra A família de Johann Andreas Schmidt e Anna Margaretha Althaus e a história de sua filha Emilie: emigração da Turíngia para a Colônia de Santa Cruz. Fartamente ilustrado com mapas, documentos e fotografias, em 234 páginas, o volume foi lançado pela Oikos, de São Leopoldo, em 2020. Esse texto é fruto de vários anos de pesquisa, que principia em 1997, quando ele, formado em Psicologia, determinou-se a saber mais sobre a própria família.

Há mais de 20 anos, ele atua como técnico judiciário da Justiça Federal em Santa Cruz. Além das pesquisas pela internet e em bibliotecas e arquivos no Brasil, Luciano viajou à Alemanha, percorrendo em especial a Turíngia, de onde veio sua tataravó Emilie. E só isso já era um fato a se salientar. Para a Colônia Santa Cruz vieram colonos oriundos em sua maioria do Hunsrück e da Pomerânia, sendo que poucos eram os casos de turíngios na região. Emilie nasceu na localidade de Gräfenroda, no ducado de Sachsen-Coburg e Gotha, filha de Johan Andreas Schmidt (também conhecido como Adolph) e Anna Margaretha Althaus (ou Therese), no dia 27 de maio de 1840.

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Fora a terceira de dez irmãos. Quando adolescente, ela teve três filhos ainda solteira (Emma, Eduard e Oskar, sendo que este faleceu com poucos meses de vida). Esse fato marcou seu destino, mantendo-a em grande medida apartada da família, com algumas breves reaproximações. Com os dois filhos que tinha, casou-se em 1867 com o agricultor Friedrich Bernard Lusche, e com ele teve mais três: Paul, Ernst e Bernhard. Estava grávida desse terceiro quando, em 1871 (o ano da unificação alemã), a família decidiu emigrar para Santa Cruz, no Rio Grande do Sul, onde uma irmã do seu esposo (e sua família) já morava, ao sul da colônia alemã. Na viagem para o Brasil, o marido faleceu, e ela chegou sozinha, com cinco filhos. Ficou alguns dias com a cunhada, que lhe era estranha, e por fim adquiriu meio lote colonial em São João da Serra.

O marido da cunhada, Johann Andreas Berlt, possuía uma casa comercial, e nela Emilie ajudou. Por lá, certo dia passou a cavalo um colono da área norte da colônia, de Linha Dona Josefa, que habitava o último lote, quase em Sinimbu. Chamava-se Philipp Schmidt, estava viúvo e, por sua vez, tinha cinco filhos por criar. Uniram-se, e foram morar no lote. Tiveram outros cinco filhos: Adolph, Albert, Heinrich, Anna Margaretha e Carl. Philipp, que era de Sohren, no Hunsrück, faleceu em Dona Josefa, em 1910, enquanto Emilie morreu em 28 de janeiro de 1918, em Linha Rio Pardinho, estando sepultada no Cemitério Evangélico local. Em uma vida marcada pela superação, cumprira trajetória única dos dois lados do oceano.

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O segundo volume vai estar centrado nos descendentes

O livro de autoria de Luciano Schmidt apresenta inúmeros méritos de pesquisa e método que o posicionam em destaque em obras de genealogia ou de resgate de trajetória familiar. A exaustiva investigação de fontes primárias, bem como a meticulosa apuração em arquivos, torna-o de consulta valiosa para todos, diletantes ou especialistas, interessados no tema da imigração e da colonização.

Luciano nasceu em Santa Cruz, filho de Valmor e Astéria Schmidt. A família fixou-se no Vale dos Sinos, e assim ele cresceu entre São Leopoldo, Novo Hamburgo e Porto Alegre. Formou-se em Psicologia pela Unisinos. Há cerca de duas décadas prestou concurso para a Justiça Federal em Santa Cruz: aprovado, voltou a morar na terra natal. Casado com Simone Comin, natural de Nova Prata, tem com ela o filho Pedro, de 9 anos.

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Seu empenho em resgatar o passado familiar e colonial resultará, em breve, em um segundo volume, conforme ele mais exaustivo em termos de conteúdo do que o primeiro, com em torno de 500 páginas. Esse segundo livro também falará da primeira esposa de Philipp Schmidt e dos filhos.

De sua primeira obra ainda possui exemplares à venda, que podem ser encomendados pelo e-mail lucschmidt1975@gmail.com. O segundo volume, agora centrado detalhadamente nos descendentes diretos de Phillip Schmidt e de Johanne Alwine Emilie Schmidt, os patriarcas de seu clã familiar na Colônia Santa Cruz, sairá novamente pela Oikos.

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De suas pesquisas, Luciano destaca que, quando Emilie e o então marido, Friedrich Bernard Lusche, deixaram a Alemanha, o paradeiro do pai dela, Adolph, era desconhecido (a mãe já era falecida). Posteriormente, descobriu que Adolph havia se fixado em Riga, na Letônia, onde também moravam dois irmãos de Emilie, e ali o pai dela morreu, em 1877.

Entrevista – Luciano Schmidt, pesquisador e escritor

  • Seu livro resgata a história dos antepassados, em dupla ascendência Schmidt. Em que momento o olhar passou do ramo masculino para o feminino?
    Vivemos em uma cultura essencialmente patriarcal, que ainda concede grande ênfase ao masculino, enquanto sinônimo de força, coragem, audácia e inteligência. Em termos históricos, ainda é muito recente o resgate do papel da mulher nas grandes transformações sociais. No contexto da imigração alemã, a mulher que chega à nova terra coloca-se em pé de igualdade com o homem, à frente da família, desempenhando as tarefas cotidianas com o mesmo afinco, enfrentando as mesmas lutas pela sobrevivência.
    Foi apenas progressivamente, à medida que avançava nas pesquisas, que fui me dando conta da força da mulher imigrante, ao conhecer com mais detalhes os desafios que se apresentavam à minha antepassada, e como ela os foi recebendo e enfrentando.
    Muitas pesquisas de família valorizam em grande medida o papel do homem, que detém o sobrenome que acaba por se manter, sendo transmitido de geração em geração. Mas eu tive a preocupação de retratar, ao lado do homem, a mulher que o acompanhou em suas esperanças e angústias, em suas alegrias e tristezas. Trata-se de fazer justiça e devolver à mulher o lugar de dignidade que ela merece na história.
  • O senhor já tinha informação de família sobre a Emilie, algum relato oral, ou ela era desconhecida, incógnita, até a pesquisa?
    Infelizmente, minha família guardou pouca coisa, tanto materialmente quanto em termos de histórias e lembranças, sobre os antepassados. Fico feliz quando percebo que algumas famílias possuem um rico arcabouço de memórias e guardam objetos e fotografias que ajudam a contar sobre seu passado. Mas esse não era o meu caso. Então, dei início a uma longa jornada, primeiramente nos registros civis, depois nos registros paroquiais, e também em arquivos históricos, na busca por informações objetivas, a partir do que fui montando a árvore genealógica da família.
    Nessa busca, fui encontrando muitas pessoas que me auxiliaram a obter os materiais ou indicaram as fontes onde poderia encontrar o que procurava. Após alguns anos, tive a sorte incrível de encontrar uma senhora, hoje octogenária, que preservou em sua memória o que havia escutado de sua avó quando ainda era uma criança, enquanto brincava com outras crianças na sala de estar de sua casa.
    Essas lembranças foram cruciais para eu conseguir resgatar a história da família. Anotei tudo o que podia. Pouco tempo depois, com as pesquisas ocorrendo já na Alemanha, pude ir confirmando, com exatidão, o que a história oral havia me apresentado. Foi um verdadeiro tesouro encontrar alguém que tinha guardado suas memórias com tanta clareza. Até então, Emilie era uma figura sem rosto, um nome gravado em uma lápide, em um antigo cemitério. Aos poucos, ela foi tomando forma e pude resgatar seus traços de personalidade, para além do simples nome e da data de nascimento.
  • O senhor pesquisou tanto no Brasil quanto na Alemanha. Como foi o trabalho por lá?
    Pesquisar na Alemanha não se mostra uma tarefa simples. É preciso paciência e persistência. Existem muitas informações, que recentemente têm sido mais e mais disponibilizadas, mas ainda, em muitos casos, é preciso contar com alguém que auxilie nas buscas no local. Encontrar essa pessoa, muitas vezes, é algo demorado: eu levei anos até formar essa ponte. Posso dizer que tive muita sorte de encontrar duas pessoas que se interessaram pela pesquisa e se disponibilizaram a me auxiliar: uma senhora que mora em Utzberg, cidadezinha pequena, ao lado de Erfurt, onde Emilie viveu e se casou; e um jovem, que é presidente de um grupo de pesquisa histórica e genealógica na Turíngia.
    Ambos acabaram se tornando grande amigos, no decorrer dos anos. Mantivemos contato por longo período, em que fui recebendo, um após outro, diversos materiais e informações sobre a família. Até que, em 2018, viajei e os encontrei pessoalmente. Foi quando visitei os locais em que a família de Emilie viveu, inclusive o casarão onde ela nasceu, em 1840, que hoje é um restaurante e preserva os mesmos traços, em meio à paisagem bucólica da Floresta da Turíngia.
  • Como na Alemanha se conhecia a história dos descendentes no Sul do Brasil?
    O grupo de pesquisa histórica e genealógica da Turíngia, do qual faço parte, vê com grande admiração os desafios e as conquistas que as gerações precedentes vivenciaram. Há um vivo interesse em resgatar as histórias que muitas vezes permanecem esquecidas em arquivos, e torná-las parte do arcabouço compartilhado entre os familiares. Quando essas histórias envolvem a emigração para o Novo Mundo, outros elementos se somam, pois temos o encontro de culturas muito distintas, e o choque que isso representa. Os desafios se tornam ainda maiores, em grande medida pelas condições que os alemães encontraram, em que tudo ainda estava por ser construído.
    A literatura sobre a imigração tem trazido esses elementos ao nosso conhecimento, e podemos ter, em linhas gerais, ideia de quão difícil foi a adaptação à nova realidade. Mas é na leitura das particularidades de cada situação que tomamos mais consciência do que foi aquele processo e não deixamos de ficar assombrados com os fatos. Esse assombro é o que percebi conversando com muitos alemães que estudam a história das famílias e da imigração.
    Quando estive na Alemanha, em 2018, apresentei ao grupo um panorama do Brasil, de sua grandeza e de suas contradições, e de sua diversidade étnica e cultural. Sabia que, para muitos deles, o Brasil ainda é um tanto desconhecido, não passando de algumas ideias um tanto vagas, formadas a partir do que é veiculado pela grande mídia, na Alemanha. Assim, espero ter podido ao menos apresentar o país que recebeu aqueles alemães que para cá vieram, bem como as contribuições que eles também proporcionaram aos que viviam aqui, um legado que ajudou a formar nossa sociedade.
    É importante lembrar que o Brasil foi destino para um número relativamente pequeno de alemães, se compararmos ao número dos que se dirigiram à América do Norte. Ainda outros lugares receberam alemães, como Argentina, Chile e até a Austrália. Então, da perspectiva dos alemães, o grande destino, pelo menos numericamente falando, foram os Estados Unidos. Mas, diferentemente de lá, aqui preservamos em grande medida a língua, e não foram poucas as vezes em que tive a satisfação de ser perguntado como eu falava o idioma alemão praticamente sem sotaque. Para isso contribuiu, com certeza, o fato de ter aprendido em tenra idade o dialeto com meus avós. Mais tarde, fui aprimorando minha expressão, para poder falar melhor, ler e escrever.
  • O contato em virtude do livro motivou reaproximação com essas regiões alemãs?
    O resgate da história da família proporcionou o contato com várias pessoas, com quem pude compartilhar não só informações, mas também vivências, momentos em que o passado e o presente estavam sempre entrelaçados. É um tipo de experiência que vai muito além do turismo tradicional, pois há um contexto cultural que dá sustentação ao que vamos conhecendo.
    As regiões de onde vieram muitos de nossos antepassados alemães não são particularmente conhecidas como destinos turísticos tradicionais. Mas é ali que estão nossas raízes, e os contatos pessoais que podemos fazer, e as vivências que podemos ter, nos fazem, de alguma forma, reencontrar algo em nosso íntimo. Mesmo que, em termos históricos, a Europa tenha passado por drásticas transformações, em muitos aspectos é possível (re)encontrar significados para o que, como descendentes, ainda mantemos vivo em nosso cotidiano, na maneira de ser e de viver.
  • Novo livro está a caminho? Agora vai iluminar o ramo paterno de seu antepassado?
    Já tenho pronto um livro, a ser lançado em breve, sobre o imigrante paterno, o alfaiate Philipp Schmidt, proveniente do Hunsrück, região entre os rios Reno e Mosela. Ele veio para Santa Cruz em 1857, com sua esposa e um filho. A família instalou-se no extremo norte da Linha Dona Josefa, onde o casal teve mais alguns filhos.
    Com o falecimento da esposa, em 1871, Philipp casou-se novamente, então com Emilie, que já era viúva e com quem teve mais cinco filhos. Fiz nova viagem à Alemanha, em 2022, e fiquei uma semana nas regiões do Hunsrück e do Mosela, onde encontrei pesquisadores locais, com quem já havia feito contato prévio, que me auxiliaram a visitar os lugares onde a família viveu. Foi possível compreender melhor algumas questões que ainda restavam em aberto, além de descobrir novos elementos, que enriqueceram ainda mais o relato.
    Este segundo livro retrata a história da família Schmidt, desde os primeiros registros conhecidos, no final do século 18, passando pelas vicissitudes que levaram à emigração de grandes contingentes a partir dos estados alemães, a vinda da família para o Brasil, como se deu a instalação na colônia e também a história dos descendentes, onde cada filho tem sua própria trajetória relatada com detalhes.
    Todo o relato vem acompanhado de suas respectivas genealogias, com muitas fotos, gravuras e mapas (ao todo, são mais de 200, muitas delas coloridas). É um verdadeiro resgate da família Schmidt, em que também apresentamos o contexto da então Colônia de Santa Cruz, passando por seu desenvolvimento até se tornar município, bem como a conquista de novas regiões de imigração no Rio Grande do Sul, as chamadas colônias novas.
  • O que essa reaproximação com o seu passado significou para o senhor e a família?
    É o trabalho de uma vida. Foram mais de 25 anos de pesquisas. E não tenho a pretensão de ter esgotado o tema, pois tenho a consciência de que se trata de recorte, apenas. Mas busquei com isso não só encontrar e conhecer minha própria família, mas também gostaria que meu trabalho pudesse, de alguma forma, servir de incentivo a outras pessoas.
    Precisamos conhecer melhor nossas origens, preservar o legado que recebemos e revalorizar o idioma alemão, que ainda é falado em nosso querido município. Trata-se de patrimônio imaterial que precisamos manter vivo e do qual precisamos nos orgulhar.

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Paula Appolinario

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